8 de Março:

A origem revisitada do Dia Internacional da Mulher

Mulheres samurais

no Japão medieval

Quando Deus era mulher:

sociedades mais pacíficas e participativas

Aserá,

a esposa de Deus que foi apagada da História

sexta-feira, 31 de março de 2017

Nas sociedades atuais, corremos o risco de fazer da censura a resposta padrão para qualquer opinião que nos ofenda

Julie Bindel é escritora, jornalista e feminista inglesa
Julie Bindel é a polêmica escritora, jornalista e feminista inglesa que mantém coluna no jornal britânico The Guardian. No vídeo abaixo, ela fala de como o "ofendidismo" vem se tornando um instrumento de censura contra todas as pessoas que contradizem a opinião dos chamados "guerreiros da justiça social" ou "politicamente corretos". Como ela reflete, não é possível banir tudo que nos ofende. Vale mais a pena ouvir os argumentos de quem discordamos não só para expandir nosso conhecimento, com outras visões de mundo, como para estabelecer estratégias racionais de resistência contra o que repudiamos.

Fiz uma edição da transcrição do vídeo, realizada pelo pessoal do site Fronteiras do Pensamento, de onde retirei o texto que se segue, para melhor compreensão.  

Julie Bindel: "Desculpe, mas não podemos banir tudo que lhe ofende"

Bloqueado nas mídias por amigos ou páginas? Teve comentários apagados de sites? Teve fotos removidas do Facebook? E perfis banidos? Encontrou problemas ao tentar discutir pontos de vista na faculdade ou com colegas de trabalho?

Há quem diga que o grande desafio atual é aprender a se sentir ofendido, pois seria este o ponto de partida para compreender outras visões de mundo. É o caso dos escritores Salman Rushdie, Ian McEwan ou Julie Bindel, que argumenta, nesta fala ao The Guardian, que “estamos rapidamente nos tornando uma sociedade em que a censura é o novo normal".

Veja abaixo a transcrição e o polêmico vídeo sobre censura e liberdade de expressão na contemporaneidade:


"Lamento, mas não podemos banir tudo que lhe ofende.

Em janeiro, mais de meio milhão de pessoas assinaram um abaixo-assinado para impedir a entrada de Donald Trump no Reino Unido.

Em 2015, a Conferência da União Nacional de Mulheres Estudantes  debateu banir o “cross-dressing (vestir-se com roupas do sexo oposto)" como fantasia, já que poderia ofender pessoas transgênero.

Eu tenho sido proibida de participar de debates pelos sindicatos de estudantes de todo o país. Em um debate, estudantes furiosos afirmaram que ficariam traumatizados se forçados a repetir minhas terríveis opiniões transfóbicas. Acontece que nenhum deles leu nada do meu trabalho.

O que aconteceu com a liberdade de expressão? Estamos rapidamente nos tornando uma sociedade na qual a censura é o novo normal.

Movimentos políticos, como os dos direitos civis dos negros americanos e o feminista, fizeram enormes progressos pois foram capazes de responsabilizar as pessoas por suas falas e atos.

Impedir as pessoas de manifestar publicamente suas opiniões não faz com que essas opiniões desapareçam.

Banir Donald Trump do Reino Unido não vai impedir os americanos de votarem nele.

Impedir Roosh V (escritor masculinista e antifeminista americano) de entrar no país... [áudio Roosh V: “Se legalizarmos o estupro, as mulheres terão maior cuidado com seus corpos...] ...não muda em nada o fato de que, no Reino Unido, uma média de 85 mil mulheres são estupradas e 400 mil abusadas sexualmente todo ano. Censurá-lo só nos cega sobre a existência das ideias que ele articula.

Vamos ouvir os argumentos defendidos por aqueles de quem discordamos para que possamos expandir nosso conhecimento e demonstrar uma resistência racional a eles.

Esse problema da censura está ficando cada vez pior e pior. Corremos o risco de fazer da censura a resposta padrão para qualquer opinião que nos ofenda.

A não ser que alguém esteja infringindo a lei, por incitar o crime com suas palavras, acredito que crime de fato seja não escutá-lo.


Fonte: Fronteiras do Pensamento, por Julie Bindel/The Guardian, 12/02/2016

quinta-feira, 30 de março de 2017

Mulheres notáveis: Janine Benyus propõe copiar a natureza como método de trabalho

Somos rodeados pelos gênios da Natureza 
Janine Benyus tem uma mensagem aos inventores: quando forem resolver um problema de design, olhem para a natureza primeiro. Lá encontrarão designs inspiradores para fazer coisas à prova d'água, aerodinâmicas, com energia solar, etc.

Janine Benyus é uma bióloga norte-americana e fundadora do Biomimicry Institute, focado em difundir as técnicas da biomiméticaa ciência das invenções inspiradas na natureza. Janine foi  responsável por popularizar o conceito em seu livro Biomimética: Inovação inspirada pela Natureza, onde detalhou como a ciência estava estudando as melhores ideias de mares, florestas e desertos para resolver os problemas do século 21.

Que a ciência sempre procurou inspiração na natureza para a solução de problemas humanos (o avião copia os pássaros) não é novidade. A originalidade de Janine, contudo, foi propor essa inspiração como um método de trabalho, uma abordagem sistemática para resolver problemas. Desde então, designers, arquitetos e empresários passaram a entrar em contato direto com a natureza para tirar dela não mais apenas matéria-prima, mas sobretudo ideias-respostas a suas perguntas. 

Para ajudar as companhias ansiosas para encontrar, na sabedoria da Mãe Natureza, respostas para inovações tecnológicas, Janine criou Biomimicry 3.8 (o número representa 3,8 bilhões de anos de evolução), um programa que treina profissionais das mais diversas áreas para desenvolver projetos inspirados na natureza.

O resultado é que vem aí minirrobôs voadores, inspirados nas abelhas e uniformes-camaleões que mimetizarão o meio-ambiente em que se encontram os soldados, inspirados nos camaleões naturalmente. Já em uso estão as malhas que capturam gotículas de umidade suspensas no ar, inspiradas no besouro-da-namíbia; tintas autolimpantes, inspiradas nas asas da borboleta-seda-azul (comercializadas na Europa) e concreto feito com ar, inspirado nos corais  (comercializado nos EUA). 

No vídeo abaixo, a cientista fala mais sobre a biomimética e de como somos rodeados por gênios (fauna e flora do planeta) que inventaram o mundo em que vivemos. Mais um adorável golpe no antropocentrismo dado por uma mulher notável.

Publicado originalmente em 03/02/14

quarta-feira, 29 de março de 2017

Emmy Noether, a quem Einstein se referiu como um dos gênios matemáticos de seu tempo

Emmy Noether foi uma matématica que revolucionou os campos da álgebra abstrata e física teórica enfrentando de quebra o arraigado sexismo de seu tempo. No seu 133º aniversário, 23/03/15, o Google fez um doodle em sua homenagem. Resolvi então traduzir o texto da autora do doodle sobre Emmy, Sophie Diao, porque o resgate da participação feminina nas Ciências, sempre tão relegado, é essencial.
133º aniversário de Emmy Noether

Emmy Noether não era uma pessoa comum. Precisa de provas? Quantas pessoas você conhece que tiveram Albert Einstein como fã de seus trabalhos? O lendário físico certa vez se referiu a Noether como "O  mais significativo e criativo gênio matemático surgido até agora", um endosso e tanto para uma matemática que fez contribuições inovadoras nos campos da álgebra abstrata e física teórica enquanto superava o sexismo profundamente arraigado de sua área de trabalho. Em homenagem ao 133º  aniversário de Noether, pensei que o melhor seria destacar as inúmeras realizações desta matemática e sua influência no mundo.

Quando comecei a elaborar o doodle sobre Noether,  desenhei originalmente vários esboços na tentativa de expressar graficamente seu teorema a partir do impacto revolucionário que ele teve na maneira como as pessoas passaram a abordar a Física. Mas depois de discutir minhas idéias com alguns profissionais da área, decidi que o doodle deveria incluir também referências ao seu trabalho matemático. Noether era apaixonada por matemática, apesar de viver em uma época em que as mulheres foram muitas vezes impedidas de se envolver com assuntos dessa natureza. Enquanto estudava na Universidade de Erlangen, como apenas uma das duas mulheres da escola, Noether tinha que obter permissão de seus professores para participar das aulas da matéria e, mesmo assim, apenas como ouvinte. Depois da graduação, Noether lecionou, sem remuneração, na escola do Instituto de Matemática por sete anos, frequentemente cobrindo aulas de seu pai, quando ele estava doente, enquanto publicava seus próprios trabalhos.

Mas não houve obstáculos que separassem Noether de seus estudos. Neste doodle, cada círculo simboliza um ramo da matemática ou física a que Noether dedicou sua ilustre carreira. Da esquerda para a direita, você pode ver a topologia (o donut e a caneca de café), cadeias ascendentes/descendentes, anéis noetherianos (representados no doodle pelo teorema Lasker-Noether), o tempo, a teoria do grupo, a conservação do momento angular e simetrias contínuas, etc. Os avanços que Noether trouxe a sua área de conhecimento não só refletem seu brilho mas também  sua determinação em face da adversidade.

Mais sobre Emmy Noether aqui 
Publicado originalmente em 26/03/15

terça-feira, 28 de março de 2017

Matriarcados: quando as mulheres é que mandam

Bijagós: elas organizam o trabalho, a gestão da economia e a lei
Conhecer sociedades matriarcais ou matrilineares tem dois objetivos salutares fundamentais:
primeiro, desconstruir a crença de que o patriarcado em que vivemos é natural, universal e atemporal. Como tudo que se refere ao ser humano, visões essencialistas e deterministas não encontram respaldo na história da humanidade. O patriarcado, ou seja, o sistema onde o sexo masculino monopoliza a condução das sociedades e domina as mulheres, é um evento histórico consolidado sobretudo com o advento das religiões patriarcais, com destaque para as abraâmicas, a saber o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.
segundo, citando as palavras da antropóloga Anna Boye "porque, através do saber que se adquire com elas, a gente aprende que há novas maneiras de organizar a sociedade, novas maneiras de ser, o que nos obriga a revisar tudo que aprendemos". 
Abaixo edição do texto original O que podemos aprender com as sociedades em que as mulheres mandam, da Natasha Romanzoti, e informações do blog da antropóloga Anna Boye. Ver também, ao fim da postagem, vídeos sobre sociedades matriarcais e um sobre a visão negativa que nossa sociedade patriarcal tem das mulheres à guisa de comparação.
Ede
Tradicionalmente, nas aldeias Ede do Vietnã, são as mulheres que possuem todas as propriedades e as passam para suas filhas. Elas também devem pedir seus maridos em casamento, e eles adotam o nome de família da esposa, vivendo na casa dela. A mulher mais velha da casa, inclusive, tem sua própria cadeira artesanal, que deve ser cuidadosamente esculpida a partir de um certo pedaço de madeira.

A terra é propriedade coletiva da aldeia, enquanto as florestas são sagradas, parte de sua antiga religião animista. Enquanto vestígios de costumes antigos ainda permanecem, as aldeias Ede de hoje são principalmente cristãs protestantes (ou seja, a contaminação patriarcal já se instalou).

Mosuo
Na sociedade Mosuo, no sudoeste da China, perto do lago Lugu, as mulheres tomam a maioria das decisões de negócios e gerenciam as famílias completamente. O também chamado “Reino das Mulheres” é formado por 40.000 fortes damas, e é uma das últimas sociedades matriarcais do mundo. A “Ah Mi” é a líder suprema da casa, normalmente a mulher mais velha. Crianças são criadas comunitariamente. Muitas vezes, uma família ajuda a criar o filho de outra como se fosse sua. Enquanto todo mundo compartilha um espaço comum, mulheres com mais de 13 anos de idade ganham a privacidade de seu próprio quarto, chamada de “sala de floração”. As mulheres podem escolher seu parceiro, mas não ficam totalmente ligadas à ele. Como convém a uma cultura com nenhuma palavra para “pai” ou “marido”, as mulheres não casam. Em vez disso, têm quantos amantes quiserem, convidando-os para encontros secretos à noite (geralmente depois que os homens passaram o dia todo abatendo porcos, enquanto elas organizavam as finanças domésticas). A propriedade é transmitida através da linha feminina e não há nenhum estigma em não saber quem é o pai de uma criança. Tal utopia matriarcal tem desvantagens, no entanto – visitantes curiosos vão até a região antes isolada sob a sugestão equivocada de que as mulheres Mosuo oferecem sexo grátis o tempo todo. Infelizmente, algumas das aldeias anteriormente pacíficas foram invadidas por hotéis, cassinos, karaokês e até um “distrito vermelho”.

Hopi
A tribo indígena americana Hopi se chama de “as pessoas pacíficas”. Eles basearam seu modo de vida em um respeito por seu ambiente, e tradicionalmente se organizam em volta de matriarcas. As mulheres ocupam a maior parte do poder, mesmo que o trabalho seja dividido igualmente.

Todas as mulheres se reúnem sempre que um bebê na tribo chega aos 20 dias de idade, a fim de nomeá-lo. É uma sociedade extremamente cooperativa, e que evoca princípios comuns a todos os níveis.

Chambri
Os escritos de Margaret Mead sobre o povo Chambri, de Papua Nova Guiné, em 1930 ajudaram a reforçar o feminismo nos Estados Unidos. Mead escreveu sobre como as mulheres é que pescavam e proviam para sua família e comunidade na sociedade Chambri. Antropólogos mais tarde concluíram que, embora as observações de Mead estivessem corretas, a dinâmica de poder entre as relações dos Chambri era mais igualitária do que ela deixou transparecer. No entanto, o povo Chambri ainda é um bom exemplo de uma sociedade com uma política sexual atípica, onde mulheres mantêm o controle de muitos aspectos da cultura.

Meghalaya
De acordo com o Livro dos Recordes Guinness, o estado indiano de Meghalaya é o lugar mais chuvoso na Terra. Suas populações tribais também possuem um dos poucos sistemas matrilineares sobreviventes do mundo, onde as mulheres, em vez de homens, são as donas das terras e propriedades. A tradição dita que a filha caçula da família herda todos os bens, bem como atua como zeladora dos pais idosos e irmãos solteiros. Quanto aos homens da família, um movimento sufragista surgiu, com grupos de direita afirmando que a cultura matrilinear está produzindo gerações de senhores que ficam aquém do seu potencial, posteriormente entrando no alcoolismo e abuso de drogas.

Aka
Os homens do povo Aka, na Bacia do Congo, na África, têm sido descritos como os “melhores pais do mundo”. Eles brincam com seus bebês pelo menos cinco vezes mais frequentemente que homens de outras sociedades. Enquanto as mulheres caçam, os homens cozinham. Berços não existem; os casais nunca deixam os bebês deitados sozinhos, e se um deles bate em uma criança, isso é base para divórcio. Mais impressionante de tudo, os pais Aka oferecem seus mamilos como chupetas para seus bebês quando a mãe não está por perto.

Minangkabau
Vivendo principalmente na Sumatra Ocidental, na Indonésia, em quatro milhões de pessoas, o povo Minangkabau é a maior sociedade matrilinear conhecida hoje. Além do direito tribal que exige que todos os bens do clã sejam legados de mãe para filha, o povo Minangkabau acredita firmemente que a mãe é a pessoa mais importante da sociedade. Após o casamento, cada mulher adquire seu próprio quarto. O marido pode dormir com ela, mas deve sair no início da manhã para tomar café na casa de sua mãe. Aos 10 anos, os meninos saem da casa de sua mãe para ficar em quartos de homens e aprender habilidades práticas. Os homens são sempre chefes do clã, mas são elas que escolhem o chefe e pode tirá-lo do posto se sentirem que ele não cumpriu suas funções.

Akan
Os Akan vivem em sua maioria em Gana e aderem à estrutura social matriarcal, apesar da pressão do governo.

A organização social dos Akan é fundamentalmente construída em torno do clã matriarcal. Dentro deste clã, a identidade, herança, riqueza e política são todas determinadas pelas mulheres.

No entanto, homens tradicionalmente ocupam cargos de liderança. Muitas vezes, o homem deve não só sustentar sua própria família, mas as de suas parentes do sexo feminino.

Bribri
O povo Bribri é um pequeno grupo indígena de pouco mais de 13 mil pessoas que vivem em uma reserva no Cantão Talamanca, na província de Limón, Costa Rica. Como muitas outras sociedades matrilineares, a de Bribri é organizada em clãs. Cada clã é composto de uma família e determinado pela matriarca. As mulheres são as únicas que tradicionalmente podem herdar terra, além de possuírem o direito de preparar o cacau usado nos rituais sagrados do povo.

Nagovisi
O povo Nagovisi vive no sul de Bougainville, ilha de Nova Guiné. O antropólogo Jill Nash relatou detalhes da sociedade dividida em clãs matriarcais. Por exemplo, mulheres Nagovisi estão envolvidas na liderança e cerimônias do povo, mas também trabalham nas terras que possuem. Nash observou que, quando se trata de casamento, a mulher Nagovisi dá à jardinagem e à sexualidade igual importância. O casamento não é institucionalizado. Se um casal é visto junto, dorme junto e o homem ajuda a mulher em seu jardim, para todos os efeitos, eles são considerados casados.

Bijagós
Trata-se de uma comunidade da ilha Orango Grande, no arquipélago Bijagós, em frente a costa de Guinea Bissau, onde as mulheres governam, gerenciam a economia e são respeitadas.

Segundo a antropóloga Anna Boye, nesta comunidade bijagó de Orango Grande cada sexo tem funções diferentes: as mulheres seguem a tradição de seus antepassados e organizam o trabalho, a gestão da economia e a lei, porém com um sistema de valores que aprecia os homens por sua sensibilidade e delicadeza e os valoriza pelo trabalho no campo, na caça e na pesca. Também os homens são levados em conta na hora de decidir as questões da comunidade com vistas ao bem comum.

Abaixo, o documentário Matriarcados: A lha das Mulheres, da antropóloga Anna Boye, outro sobre a sociedade Mosuo e um terceiro questionando o rebaixamento da mulher na educação patriarcal (à guisa de comparação). Fazer alguma coisa como uma menina é uma coisa negativa, ridícula.

Com informações de Hypescience e do blog da antropóloga Anna BoyeVer também Libertem as meninas do estereótipo feminino e elas serão grandes cientistas, matemáticas, engenheiras 




Publicado originalmente 04/07/2014

segunda-feira, 27 de março de 2017

"Misandria": uma grande zoeira e o sempre renovado ataque à autonomia das mulheres

A misandria só existe mesmo nos dicionários

Em páginas no facebook, onde se discutem tópicos referentes às questões das mulheres em geral, uma palavrinha vem rolando na boca de mulheres e homens, geralmente relacionada ao tema da participação de homens no feminismo (sic). Trata-se da palavra misandria, que fez suas primeiras aparições em língua inglesa em 1878 (para o Webster, 1909) e vem do grego miso= "ódio" + andros= "relativo ao homem, sexo masculino". Posteriormente, ainda em língua inglesa, pipocou em um artigo ou outro até se tornar mais frequente a partir dos anos 50 do século passado, alavancado sobretudo por grupos antifeministas ou masculinistas.

Em português brasileiro, online ao menos, não aparece em nosso dicionário mais famoso, o Aurélio, nem no Michaelis, nem no Aulette. Encontrei o verbete apenas no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa como: mi·san·dri·a (miso- + grego anér, andrós, homem + -ia), substantivo feminino = Aversão aos ou desprezo pelos indivíduos do sexo masculino. Isso significa que o termo ainda não tem grande circulação fora do âmbito dos movimentos e redes sociais.

De qualquer forma, "misandria" só existe mesmo em dicionários (talvez também agora em glossário psiquiátrico como a misoginia). Fora desse âmbito, ela não tem realidade social, ao contrário de sua equivalente misoginia que possui bastante concretude. Algumas falas iradas que mulheres, indignadas com a sociedade patriarcal, dirigem a homens, genericamente falando, podem, dependendo do contexto, ser realmente caracterizadas como sexistas, mas "misandria" é outra coisa. Mulheres não têm poder para ser "misândricas" como os homens têm para ser misóginos. Estabelecer simetria entre os dois termos ou é ignorância ou má-fé machista.

Misoginia não são apenas falas grosseiras ou depreciativas dirigidas a mulheres, o que poderíamos considerar mais como sexismo, dependendo do grau de depreciação. Misoginia é o ódio à mulher concretizado em inúmeras formas de violência contra o sexo feminino que vão desde restrições civis a atos de barbárie. Sem falar no monopólio masculino de várias áreas profissionais e de conhecimento.

Citando alguns exemplos, misoginia é a negação do direito ao voto e ao estudo que ainda existe em vários países, do direito à propriedade, do direito a transitar sozinha, do direito de trabalhar remuneradamente, do direito de escolher como se vestir, do direito de escolher com quem casar, do direito a participar da política, do direito sobre o próprio corpo (via criminalização do aborto) até a barbárie do estupro, do espancamento doméstico ou público, do açoitamento, da mutilação genital (130 milhões de vítimas no mundo) e de outros partes do corpo, além do assassinato.

A propósito da definição de misoginia: 70% das mulheres sofrem algum tipo de agressão durante suas vidas cometida por homens

Backlash: a acusação de odiar os homens acompanha as feministas desde seus primeiros passos

Por isso mesmo, quando comecei a ouvir essa palavrinha sendo jogada pra lá e pra cá contra ativistas, senti logo o cheiro azedo do velho e manjado backlash antifeminista. Backlash significa reação contrária, contra-ataque, no caso aos direitos das mulheres. A feminista americana Susan Faludi escreveu um clássico sobre o assunto chamado Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres (clique no título para baixar o livro), traduzido para o português em 2001 e que continua bem atual. Vale a leitura.

Os sinais de mais um surto de backlash antifeminista são bem evidentes sobretudo nas redes sociais. São os conservadores com seu feminazismo (comparando feminismo com uma das mais hediondas e antifeministas ideologias da história humana) e suas sabujas amestradas (mulheres conservadoras) culpando o feminismo por "supostamente obrigá-las a trabalhar remuneradamente quando elas queriam mesmo é ficar em casa para cuidar dos seus machos". (Então, anda difícil achar esse tipo de macho que sustenta donas de casa e a culpa é do feminismo!?).

São alguns rapazes "progressistas" que posam de interessados em feminismo e em serem aliados das mulheres em suas causas, mas que ou querem que as mulheres ensinem feminismo pra eles (vamos combinar o preço da hora-aula então) ou, mais cara de pau ainda, leem sobre feminismo, começam a se achar sabichões no assunto e passam - pasmem - a querer dizer para feministas o que é ser feminista ou não, qual o feminismo verdadeiro ou não. E, quando rechaçados em suas pretensões (machistas recicladas como "feministas"), fazem-se de ofendidos e saem choramingando que foram vítimas de "misandria". São as já famosas male tears (lágrimas masculinas), chororô masculino por descobrir que o mundo não gira mais  apenas em torno dos bolinhas.

Uma procissão de sufragistas: o direito ao voto feminino
caracterizado como um rebaixamento dos homens
Entretanto, "misandria" é apenas um novo nome para uma velha mania de acusar as mulheres, que lutam por seus direitos, de odiar os homens. De odiar os homens, de ser feias, mal-amadas, agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. Na primeira onda do feminismo, até o início do século passado, as vítimas desse backlash, dessa campanha injuriosa, foram as sufragistas, as ativistas que buscavam conquistar o direito de voto para as mulheres. O que votar tem a ver com odiar os homens? Nada, né? Mulheres e homens de hoje seriam capazes de fazer tal associação? Nem o Bolsonaro. Mas, na época da luta pelo voto, esse backlash voou solto. 

Décadas depois, foi a vez das feministas da segunda onda (anos 60 em diante), da emancipação econômica, do salário igual por trabalho igual, da descriminação do aborto, da liberação da sexualidade feminina, enfrentarem os mesmos ataques. Mais uma vez acusadas de odiar os homens, de ser feias, mal-amadas, agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. A diferença, em relação ao backlash dirigido às sufragistas, ficou por conta de se acusar abertamente as feministas de serem lésbicas em vez de falar em mulheres masculinizadas.

Aqui, no Brasil, entrou para a História o episódio de uma fulana do então proscrito Movimento Revolucionário 8 de outubro - MR-8 (e do jornal Hora do Povo) que tentou expulsar as lésbicas do III Congresso da Mulher Paulista (1981) por estas supostamente não serem mulheres e estarem encaminhando as feministas burguesas para o mau caminho. Por causa desse tipo de backlash, o movimento feminista demorou anos (no Brasil, duas décadas) para apoiar oficialmente os direitos da mulheres homossexuais. O apoio foi registrado, graças a minha intervenção, na plataforma feminista resultante dos debates da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras (junho de 2002)

Agora, na chamada terceira onda do feminismo (anos 90 até hoje), com enfoque nas desigualdades específicas de idade, etnia, orientação sexual, classe, etc. (as tais interseccionalidades,) somadas a uma maior integração com a academia e visibilidade na mídia, novamente se veem as feministas acusadas de odiar os homens, de ser feias, mal-amadas (falta de rola), agressivas, amarguradas, masculinizadas, sapatonas, contra a família. As diferenças, em relação às campanhas antifeministas anteriores, são que:
  • primeiro, agora, conjuraram o suposto ódio aos homens na palavra "misandria", alçada à moda, na última década, por grupos americanos antifeministas (Men’s Rights Activism e Men's Rights Movement), decididos a reverter conquistas das mulheres se fazendo de vítimas do feminismo.
  • Segundo, que, ao contrário de recuar diante de mais esse surto de backlash, como no passado, muitas feministas atuais decidiram assumir que são "misândricas", a maioria para zoar em cima da absurda tentativa masculinista de estabelecer simetria entre "misandria" e misoginia e uma minoria como protesto contra o sistema patriarcal ou para simplesmente desopilar o fígado, doente de tanto engolir machismos nessa vida, dizendo desaforos a homens.

Separando alhos de bugalhos: homens feministos e homens antipatriarcais

Seja como for, trata-se de reação, neste caso realmente necessária, contra o verdadeiro assalto que homens ditos progressistas (com apoio de suas capitãs do mato) vêm fazendo ao feminismo, insistindo em que "eles têm o direito de opinar no movimento feminista (por serem pela igualdade entre os sexos...hã, hã...)", "porque, errando ou acertando, no debate feminista, homem pode 'contribuir' para o movimento e até que "feminismo não é das mulheres". São frases que colhi em redes sociais e que, com algumas variações, são representativas da costumeira falta de senso de limites da mentalidade machista.

Porque, obviamente, esses homens não são aliados da luta das mulheres coisa nenhuma. Estão agindo com base na velha (de)formação machista que receberam, tentando SIM roubar o protagonismo das mulheres no movimento que elas criaram para lutar exatamente contra o machismo. Ou será que ainda restam dúvidas diante de uma frase como "o feminismo não é das mulheres"? Aliás, eu mesma presenciei a fala de um cara dizendo para uma moça, a propósito de um texto que ela escrevera sobre feminismo e capitalismo, que o feminismo dela não era verdadeiro e o dele é que era!!!

Homens são adestrados para não deixar espaços onde as mulheres possam estar sozinhas (pois ficam fora de seu controle); são adestrados para achar que as mulheres têm que servi-los e amá-los, apesar de eles terem criado um mundo que trata as mulheres a socos e pontapés. É esse adestramento que está por trás dessa historinha de participação masculina no feminismo a fim de contribuir com a luta das mulheres (cavalo de Tróia), da historinha de feminista ensinar feminismo a homens (mulher tem que servir ao homem) e amá-los incondicionalmente (foram adestradas para isso, o que falhou?)

Mas vamos combinar, mulher nenhuma tem obrigação de ensinar homem algum sobre feminismo. No máximo, se tiver, pode passar bibliografia, que isso não configura exploração. O resto ele que se vire no google como qualquer outro mortal. Mulher não tem obrigação de gostar de homem. Então, homens construíram um sistema que exala desprezo e ódio pelas mulheres por todos os poros e as mulheres nem podem expressar seu ódio por ele? Portanto, não tem essa de dizer que as que dizem não gostar de homens não são feministas. Como não? Porque escaparam do adestramento para amar incondicionalmente quem nada faz para ser amável? Se não querem ser odiados, não sejam odiáveis. Se querem ser amados, que sejam por seus méritos, não na base de todo o tipo de coação. Amor de verdade não combina com submissão.

Coletivos de Homens Antipatriarcais (na Argentina)
Por outro lado, existem sim homens pró-feministas, antipatriarcais, mas são aqueles homens que buscam desconstruir em si mesmos os condicionamentos que receberam. Um homem antipatriarcal respeita o direito de mulheres não quererem conversa com ele seja sobre o quer for, incluindo feminismo. Assim como entende que uma mulher pode não querer se relacionar sexualmente com ele. Entende o significado da palavra NÃO.

Em vez de ficar enchendo o saco de quem não tem esse apêndice, se realmente se interessa pelo tema, vai à luta, busca informações sobre o mesmo, constrói sites sobre gênero e feminismo (vi alguns) e cria grupos para discutir com outros homens outros modelos de ser homem em vez de querer forçar presença onde não é bem-vindo. Inclusive porque também sabe que homens e mulheres convivem em muitos outros ambientes onde se pode discutir feminismo sem ser o movimento feminista. Fora os espaços interseccionais que podem ser criados para esse fim COM MULHERES QUE SE DISPONHAM A CONVERSAR. 

O homem antipatriarcal também entende porque algumas mulheres detestam homens, embora pessoalmente isso lhe seja doloroso, e busca desarmar a bomba patriarcal que criou esse sintoma em vez de simplesmente rotular essas mulheres de loucas necessitadas de tratamento. Chamar mulheres que não gostam de homens de loucas é negar a realidade objetiva do mundo em que vivemos. De repente, estão mais é zonzas de dolorosa lucidez. Loucas são as estruturas do sistema que os homens criaram e não as mulheres que as odeiam.

Vale lembrar que, além das próprias ações violentas cometidas por homens contra o sexo feminino, o patriarcado ainda onera as mulheres com o peso de superar o ódio que ele mesmo provoca. Sobretudo para mulheres que experimentaram diretamente a misoginia, há de se convir que não é fácil superar o rancor provocado pela violência sofrida, embora transcendê-lo seja fundamental para seu próprio bem, para sua integridade psicológica.

Tratamento igual para comportamento igual (ou separando alhos de bugalhos)     
                      
Pessoalmente, embora já tenha sido até acusada falsamente de querer levar homens para sacrossantos espaços feministas, sempre considerei o separatismo feminista cláusula pétrea (e não só o feminista). Feminismo é coisa de mulher, como gravidez e menstruação. Sempre fui contra a participação de homens em grupos feministas, encontros feministas, e continuo sendo. O tema desse artigo, aliás, só reitera a minha posição. Os espaços feministas são para mulheres conviverem com outras mulheres, tentar a difícil tarefa de chegarem a denominadores comuns de luta, desconstruírem o adestramento para a rivalidade entre mulheres que recebem desde o berço.

Mulheres têm que priorizar mulheres e não homens, como têm feito nos últimos séculos. Mulheres têm que sobretudo priorizar a si mesmas, ser saudavelmente individualistas em contraposição à educação para a abnegação feminina, esse papo furado de se sacrificar por homens, filhos, as religiões dos homens, as "causas" dos homens ou seja lá por quem for.

Por outro lado, contudo, como sei separar alhos de bugalhos, nunca vi problemas de trabalhar com homens em outros movimentos e em outras instâncias, tendo, com uns, bons momentos de coleguismo e produtividade em ações comuns e, com outros, péssimos momentos. De uma forma geral, encaro os homens primeiro como indivíduos e não como integrantes do patriarcado opressor. Sei que a floresta patriarcal é densa, mas consigo ver que há diferenças entre as árvores. E todo mundo é inocente até prova em contrário.

Além disso, alguns homens também são vítimas desse mesmo sistema que nos aflige (sobretudo gays). Retrospectivamente, vale também lembrar que alguns homens, embora ultraminoritários, levantaram suas vozes pelos direitos das mulheres, quando elas ainda não tinham voz pública. Depois que passaram a ter, continuaram apoiando as bandeiras que as mulheres decidiram levantar sem querer decidir por elas que bandeiras são essas.

Fora ainda que há um bocado de mulher cúmplice da opressão das mulheres. Mulheres conservadoras, mesmo quando não se assumem como tais, têm um papel deletério nas lutas pela autonomia das mulheres. Não se contentam em ser medíocres e subservientes. Querem que todas sejam medíocres  e subservientes como elas. Não dá, portanto, para dividir o mundo em bandidos e mocinhas simplesmente.

Por isso, trato homens como iguais desde que como igual me tratem de forma sincera. Entretanto,
 não banco a Poliana jogando o jogo da contente porque conquistamos algumas igualdades formais. Infelizmente, no cotidiano das inter-relações pessoais, o machismo continua são e salvo e raivoso. É só dar uma olhada nas redes sociais e no atual backlash antifeminista para constatar isso. Na Inglaterra, já apareceu até partido antifeminista. Ser realista não configura nenhuma "misandria".

Dito posto, nesta situação em particular, endosso completamente o escracho que a nova geração de feministas vem fazendo dos caras de paus que querem mandar em mulher até no feminismo, posando de solidários com a luta das mulheres (no caso dos progressistas). Ao contrário das gerações de feministas anteriores, a atual não parece se intimidar com a acusação de "odiadora de homens" que sempre acompanhou a turma. Pelo contrário, parece que quanto mais as chamam de "misândricas" mais elas se assumem como tais e mais desancam uzomi (como dizem).

Me pergunto apenas se a zoação não vai longe demais quando leio um texto sério, desconstruindo objetivamente a suposta misandria, mas que termina com a autora assinando "fulana de tal, devotadamente misândrica". À guisa de comparação, é como se ativistas LGBT decidissem se dizer heterofóbicos de gozação porque um bando de manés conservadores saem até em passeata se dizendo vítimas de uma tal "heterofobia" tão real quanto a tal "misandria".

Parece que as garotas partem do princípio de que, já que vão nos xingar de qualquer forma de qualquer coisa, vamos zoando enquanto der. Mas tenho minhas dúvidas se isso não alimenta ainda mais a falácia da "misandria". Afinal quantas pessoas percebem o sarcasmo desse posicionamento? Não é possível só zoar, com todo o poder corrosivo que o humor tem contra os pequenos e grandes tiranos, sem correr o risco de parecer incoerente?

Esquerda e Direita também são filhas do Patriarcado

Vale lembrar ainda que todo esse backlash e sua correspondente zoeira não têm a ver com a surrada dicotomia esquerda-direita. O sistema patriarcal é o conjunto maior que engloba os outros sistemas político-econômicos e filosóficos criados pelos homens nos últimos milênios. Embora a citada zoeira das feministas se dirija também à direita conservadora e seu feminazismo, seu foco maior são os ditos progressistas, esquerdistas, libertários, que querem ser feministas à fórceps. Vale notar que os chamados esquerdomachos também usam a desqualicação "feminazi" dos conservadores contra as jovens feministas.

Mal fazem 30 anos que a esquerda tradicional deixou de dizer que feminismo é coisa de burguesa desocupada (mais uma desqualificação) e luta divisionista da luta maior, a luta de classes. Ainda hoje se encontram esquerdistas do gênero dizendo essa abóbora. Agora, parece que aderiram a estratégia do "se não pode vencê-las, junte-se a elas". Como a história ensina, sabe-se bem para quê. Pena que tantas ainda botem fé nessa esquerda fóssil e suas ideias arqueológicas.

Os libertários (anarquistas de esquerda) tiveram correntes promotoras da igualdade entre os sexos e a liberdade sexual desde seus primórdios, mas vale salientar que o termo libertário virou uma espécie de palavra-bom-bril que se presta a mil e uma utilidades ideológicas, chegando a ser usada hoje como autodenominação até de alguns conservadores. Basta que o cara se diga contra o boggieman Estado (o bicho-papão Estado) e já passa a se proclamar libertário, embora seja liberticida em vários outros aspectos. 

Esse sequestro do termo libertário até por conservadores tem a ver com a história política americana. Como por lá sociais-democratas passaram a se dizer liberais (desde os anos 30), liberais passaram a se denominar libertários para se diferenciar. Acontece que o liberalismo, ao longo de sua trajetória secular, saiu de sua origem de esquerda, empurrado pelo socialismo, caminhou para o centro do espectro político e acabou sequestrado pelo conservadorismo com quem passou a fazer frente ao comunismo (bem de passagem). 

Essa má companhia de certa forma imantou as tribos liberais (libertários, anarcocapitalistas, austríacos, minarquistas, liberais sociais...) de um ranço conservador que se observa em declarações, por exemplo, contra o casamento LGBT e em apoio a supostas escolhas da mulher entre perspectivas libertárias e conservadoras como se fossem equivalentes.

Contra o casamento LGBT a desculpa é que se deve lutar para o Estado não mais legislar sobre as relações humanas em vez de ampliar seu alcance. Como tal proposta é de remota concretização, na prática significa negar o acesso ao instituto civil do casamento para casais de mesmo sexo. 

Quanto às supostas escolhas da mulher, compara-se ser dona de casa com ser uma profissional remunerada, embora a primeira opção deixe a mulher numa situação de particular hipossuficiência e vulnerabilidade enquanto a outra a habilite a ser sujeito da própria vida dentro dos limites de nossas sociedades. Na mesma perspectiva, afirma-se que a mulher muçulmana tem o direito de andar de burca, no mundo ocidental, desconsiderando a situação de imigrante dessa mulher ainda sob o tacão das sharias da vida, como se estivesse no seu país de origem. 

Desconsidera-se que a burca,  niqabs e congêneres são objetivamente um mal, porque a misoginia é objetivamente errada. E essas vestes são misoginia pura, negação da presença das mulheres na esfera pública que só podem transitar como se não existissem (sem identidade visível). Fora os problemas físicos que esses trajes acarretam. A jornalista norueguesa Asne Seierstad, que escreveu O livreiro de Cabul, assim descreve o uso da burca que experimentou quando de sua passagem pelo Afeganistão:
A burca aperta e dá dor de cabeça. Enxerga-se mal através da rede bordada. É abafada e faz suar. É preciso tomar cuidado o tempo todo onde pisar, porque não podemos ver nossos pés. Era um alívio tirá-la ao chegar em casa.”
Não custa lembrar ainda que, na época da monarquia secular do xá Mohamed Reza Pahlevi (anos 60 e 70), no Irã, quando puderam escolher como se vestir, as mulheres, em geral, optaram por aposentar as burcas, niqabs e outras aberrações. Resumindo, escolhas não se dão num vácuo social e político. Muitas escolhas estão mais para escolhas de Sofia.

Em outras palavras, sob o nome libertário, hoje se observa inclusive sutis incentivos a formas conservadoras de relacionamentos humanos via análises desconectadas do contexto social em que as escolhas individuais se dão. Não deixa de ser lamentável essa regressão, considerando a importância histórica do pensamento liberal e libertário na história das conquistas das mulheres.

Citando o filósofo e economista David Schmidtz, em seu livro Os elementos da Justiça, uma teoria é como um mapa. Mapas não pretendem ser a realidade em si mesma, apenas uma representação adequada da realidade para nos orientar. De forma parecida, as teorias são representações úteis de um terreno (as sociedades em que vivemos). Nada além disso. Mapas não são perfeitos, teorias também não. Não raro, para não se perder no caminho, há que se consultar e comparar mapas diferentes.


E eles veem misandria até na Malévola

Por último, comento o artigo A Misandria de Malévola, de um cara chamado André Forastieri, publicado quando do lançamento do filme em junho do ano passado. Comento porque referenda o que disse sobre a recente circulação do termo "misandria" e porque se constitui num exemplo perfeito da vigarice dos que usam a palavra. Como acho que todos já viram o filme dá pra contar o roteiro sem estragar a festa. E pago o pato de escrevê-lo para ver quem acha a misandria da história. Quem achar leva um doce.
Era uma vez..... 
Um reino de fadas e outras criaturas da floresta sempre ameaçado pelo vizinho rei do reino dos humanos que queria lhes roubar as riquezas. Um menino do reino dos humanos, Stefan, consegue adentrar o reino das fadas onde conhece Malévola menina. Eles ficam amigos,  meio namorados, mas depois de crescidos, adolescentes, não mais se veem, pois o rapaz deixa de visitar a garota. Nesse ínterim, o rei dos humanos finalmente decide invadir o reino das fadas, mas é detido (e ferido) por Malévola, agora uma fada toda poderosa, e seus companheiros da floresta.

De volta ao castelo, no leito de morte, o rei promete o trono e a mão da filha a quem matasse Malévola. Stefan, agora adulto, por ganância, resolve se incumbir da tarefa. Volta ao reino das fadas, chama por Malévola, faz-se de bonzinho e romântico, dá-lhe uma bebida com sonífero, mas não consegue matá-la. Arranca-lhe, contudo, as asas e se vai. Apresenta as asas como prova de que teria matado a fada. Ele se torna rei, casa com a princesa, e Malévola acorda mutilada e sedenta de vingança. Quando sabe que o casal real vai batizar a filha, aparece no batizado e joga uma praga na bebê. Ao fazer 16 anos, ela tocará no fuso de uma roca de tear e cairá num sono mortal do qual só despertará se receber um beijo de amor verdadeiro. 
O pai desesperado manda queimar todos os teares do reino e guardar os pedaços no calabouço do castelo. Encarrega também três fadas benfazejas, mas atrapalhadas, de criar Aurora numa casinha no campo, onde pensa protegê-la da praga. Mas Malévola descobre onde está a menina e acaba acompanhando seu crescimento e se encantando por ela, abençoada que fora para ser cheia de graça e amada por todos. Quando a menina se aproxima dos dezesseis anos, Malévola tenta reverter o feitiço mas não consegue. Quando aparece um garoto, um príncipe, que se apaixona por Aurora, considera-o a chance de salvar a menina do feitiço. Mas a garota descobre quem a enfeitiçou e quem é seu pai. Volta para o palácio pouco antes da hora certa do feitiço funcionar e, hipnotizada, põe o dedo no fuso de uma roca de tear quebrada, que encontrou no calabouço do castelo,  adormecendo em seguida.

Malévola leva o príncipe adormecido para o castelo, e as fadas benfazejas o encaminham para beijar Aurora, mas o beijo não desperta a jovem. Malévola que observa a cena se aproxima do leito onde Aurora está deitada, arrepende-se do que fez, e beija a jovem na testa. Ela desperta. As duas tentam sair do castelo, mas são interceptadas pelo pai de Aurora que quer matar Malévola. Aurora encontra as asas de Malévola em uma caixa de vidro que deita ao chão. O vidro se quebra e as asas libertas procuram a dona que está tendo sérios problemas em vencer o rei e seu exército. Com as asas, porém, Malévola derrota o rei, as duas voltam para o reino das fadas, tudo também volta a ser feliz e cor-de-rosa como nos contos de fadas. Aurora é consagrada rainha do local e fica com o namoradinho. Malévola termina o filme voando entre as nuvens acompanhada do corvo Diaval.
E o doce vai para.... Cadê a "misandria" do enredo? O bicho comeu. Qual a mensagem da história? É o amor e o perdão não o ódio e a vingança que de fato fazem as pessoas transcenderem a dor das violências sofridas, das injustiças sofridas, que de fato cicratizam as feridas. Malévola foi traída e violentada por Stefan de quem decidiu se vingar amaldiçoando sua filha. Mas é exatamente essa filha, possuidora dos dons da beleza, da alegria e da amabilidade, que fazem Malévola amar de novo e se arrepender do que fez. Diante de Aurora adormecida, Malévola diz literalmente "eu estava tão perdida em meio ao ódio e a vingança, e, agora, perdi você para sempre" e promete proteger a menina enquanto viver. E a beija com seu beijo de amor verdadeiro que a faz despertar. Liberta do ódio, redimida pelo amor, Malévola volta ser íntegra, recuperando suas asas.

Pro picareta que escreveu o texto A Misandria de Malévola, contudo, a "misandria" é a mensagem de Malévola. É ler para crer:
Todo homem é um bruto traiçoeiro ou um idiota banana. Toda mulher é inocente, e se age mal, é por que um homem a levou a isso. Essa é a mensagem de Malévola. A nova versão da Bela Adormecida parece politicamente correta. É o contrário. O termo técnico é misandria.
O conceito está no dicionário há mais de meio século, mas ainda não faz parte do vocabulário de ninguém. Trabalho com palavras e também não conhecia. Trata-se do ódio ou desprezo ao sexo masculino. Como misoginia é o ódio contra o sexo feminino. Se não conhecia o termo, fiz minha parte para popularizar o conceito. Publicamos na editora Conrad o livro da feminista radical Valerie Solanas, SCUM Manifesto.
E ele cita um trecho do SCUM, de uma das feministas mais hardcore da história, que esculhamba os homens no mesmo nível que inúmeros filósofos esculhambaram mulheres séculos afora. Mas o que a fala radical de Solanas tem a ver com o filme em questão só mesmo a mente perturbada do autor conseguiu perceber. Tanto que acha que o SCUM deve ter inspirado a roteirista do filme, Linda Woolverton, que criou uma Malévola rainha dominadora, de couro negro, que "adota" uma princesinha púbere por quem tem uma obsessão nada maternal. Inclusive garante que, se o filme não fosse pra família, teria rolado um beijo lésbico entre elas. Pior, trata-se de amor correspondido porque é Aurora que resgata as asas de Malévola, tornando-a novamente plenamente poderosa. Então não só as mulheres podem se virar sem homens, mas também homens são supérfluos e perigosos. E termina o textículo, ruminando sobre a visão dos homens que as menininhas iam levar para casa depois de ver o filme.

Ao fim do texto, lamentei não ter lido a resenha na época em que foi escrita para ter podido dar ao autor um lençol onde enxugar tantas lágrimas masculinas de recalque. Porque não passa disso a "misandria" que Forastieri viu em Malévola. Puro recalque  por ter assistido um filme onde homens não são protagonistas e - horror dos horrores para machistas - as mulheres são solidárias na luta contra o vilão da história.

Se a descrição dos vilões das histórias como tudo que há de ruim, em qualquer mídia, fosse sinal de misandria, ia ser difícil achar um filme que não fosse misândrico, mesmo tendo homens protagonistas, como de praxe, e o roteiro e direção também feito por homens. Na quadrilogia Alien, a protagonista é mulher, e os roteiristas e diretores desses filmes passaram uma visão nada positiva do sexo masculino. Seriam então misândricos? Me poupe!!

Não dá pra deixar de observar ainda que o autor deve ser consumidor assíduo de vídeos de pornô "lésbico" e ficou viciado em ver sexo entre mulheres mesmo em relações onde só se enxerga amor materno ou fraterno. Sexualizar a relação entre Malévola e Aurora equivale a ver na relação do treinador de boxe com sua pupila, do filme Menina de Ouro, de Clint Eastwood, algo além de um sentimento paternal e filial.

Moral dessa longa história: toda vez que se ler ou ouvir um cara chamar mulheres, ou obras feitas por ou sobre mulheres, de "misândricas", é bem provável que seja porque, no filme da vida, ele se deu conta de que os homens não são mais os únicos protagonistas e - horror dos horrores pra ele, claro - as mulheres podem ser solidárias umas com as outras e derrotar juntas os vilões das histórias de todo o dia.

Abaixo o beijo de Malévola em Aurora e o resgate das asas de Malévola por Aurora Pruzomi chorarem. Beijim no ombro, guys!

Publicado originalmente em 03/02/2015



quinta-feira, 23 de março de 2017

Empresa Memphis Meats, do Vale do Silício, produz carnes sem matar animais

Empresa produz carne vermelha e de frango sem matar animais 

A Memphis Meats, do Vale do Silício, anunciou na semana passada a criação bem-sucedida de filés de frango e de pato cultivados em laboratório, feitos com DNA dos animais, mas sem abater nenhum. Os produtos são feitos a partir de amostras de célula que se multiplicam quimicamente e formam filés quase idênticos aos que já conhecemos.

Os filés de aves vêm um ano depois do lançamento das almôndegas produzidas em laboratório pela mesma companhia, que promete revolucionar a indústria alimentícia produzindo carne “de verdade” sem crueldade.
É emocionante induzir os primeiros frangos e patos que não precisaram da criação de animais. Este é um momento histórico para o movimento da carne limpa”, disse, em comunicado, Uma Valeti, CEO da Memphis Meat. 
Nós realmente acreditamos que esse é um momento significativo para a humanidade, e uma oportunidade de negócio incrível – de transformar uma indústria global gigante enquanto contribuímos para resolver um dos problemas de sustentabilidade mais urgentes do nosso tempo”, continua.
Embora já estejam prontos, os produtos devem ser lançados aos consumidores apenas em 2021, quando a companhia espera ter reduzido os custos o suficiente para que seja viável a venda dos mesmos pelos valores das carnes no mercado. Atualmente, produzir 500 g de carne em laboratório custa cerca de US$ 9 mil.

Confira, abaixo, o vídeo de divulgação da companhia, e clique aqui para mais fotos dos pratos feitos com os produtos:


Fonte: Infomoney, 20/03/2017

terça-feira, 21 de março de 2017

Libertem as meninas do estereótipo feminino e elas serão grandes cientistas, matemáticas, engenheiras

Vencedora do Prêmio Diáspora Brasil em ciências, Duilia de Mello trabalha há 11
anos na Nasa, como especialista em análise de imagens do Hubble - Tommy Wiklind/Nasa



À parte conhecer o mérito individual da astrofísica brasileira Duília de Mello, o artigo abaixo é interessante porque mostra ser a malfadada educação diferenciada o grande obstáculo para a realização das potencialidades das mulheres. Destaco trechos da notícia abaixo, da própria astrofísica, de colegas dela e de uma economista que atesta essa realidade, realidade  óbvia que muitos, contudo, insistem em não aceitar, preferindo ir buscar chifres em cabeças de cavalos para responder o porquê de certas diferenças profissionais entre mulheres e homens. (Ver também, sobre o tema, Que conservadores e "progressistas" me desculpem, mas não existe criança "trans")
Diz a economista Hildete Pereira de Mello:
A despeito das dificuldades, ela (Duília) teve o que muitas meninas não têm: a liberdade de sonhar poder ser qualquer coisa, de não ser levada a reproduzir estereótipos de gênero.
— Os brinquedos que ainda hoje damos às crianças são uma forma de manter a organização da família da mesma forma como ela está construída há séculos — explica Hildete. — A princesa remete à ideia do príncipe encantado, do casamento como o grande upgrade da vida. A boneca é a forma de domesticar a mulher para o cuidado. Para os meninos, damos canhões, automóveis, aviões. Ou seja, são formas de socializar os bebês para os papéis sociais referidos que eles deverão cumprir.
Além disso, há a questão da maternidade e da criação dos filhos.
— Os homens não dividem os encargos da maternidade até hoje — constata Hildete. — E, ainda que elas possam pagar por creches, socialmente têm uma dificuldade muito grande. O reconhecimento social da mulher passa pela maternidade. E isso não é só no Brasil, é um problema recorrente no mundo todo.

 Diz física Márcia Cristina Bernardes Barbosa:
— O problema é comum às mais diferentes culturas — diz. — E tem a ver com algumas características da carreira. Por exemplo, há uma demanda grande por viajar, e as mulheres são as responsáveis por cuidar dos filhos, dos idosos, da casa. Outra característica importante é que é preciso ser agressivo. Por último, são carreiras que demandam avaliação constante, exigem um número de publicações. É óbvio que quando elas têm filhos não conseguem a mesma produtividade.
Diz o astrofísico Neil deGrasse Tyson (ver fala no vídeo abaixo), respondendo a supostas explicações genéticas para uma suposta “aversão” das mulheres a área de exatas:
 “Eu queria ser astrofísico desde os 9 anos. E via como o mundo ao redor reagia quando eu expressava essa ambição. Os professores retrucavam: mas você não quer ser atleta, não quer ser outra coisa? Eu queria algo que estava fora do paradigma das expectativas daqueles que estavam no poder. As forças da sociedade agem. Então, se não temos muitos negros na ciência, sei que é porque essas forças são reais e tive que superá-las para estar aqui. Portanto, antes de começarmos a falar sobre diferenças genéticas entre homens e mulheres, temos de encontrar um sistema de oportunidades iguais. Aí, sim, poderemos ter essa conversa.”

Astrofísica brasileira ganha prêmio e reabre discussão sobre mulheres na ciência
Duília de Mello trabalha há 11 anos na Nasa como analista de imagens do telescópio Hubble

RIO - Astrofísica da Nasa, pesquisadora do Goddard Space Flight Center e especialista na análise de imagens do telescópio Hubble. Duília de Mello, de 50 anos, foi a grande vencedora do prêmio Diáspora Brasil, concedido aos cientistas que se destacam no exterior. A vitória de Duília numa área quase que inteiramente dominada por homens reabre o debate sobre a participação das mulheres na ciência e a exploração dos estereótipos de gênero desde a mais tenra infância. Afinal, depois de tantos avanços, por que a área de exatas continua sendo a última fronteira das conquistas femininas?

— Ainda são poucas as mulheres na ciência, e ainda há preconceito — resume Duília. — A tendência é diminuir, espero.

Metade das bolsas já é dada a elas

Economista das universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ) e Fluminense (UFF), dedicada a questões de gênero, Hildete Pereira de Mello (que não é parente de Duília) está fazendo um levantamento sobre o tema, com base nas bolsas de iniciação científica concedidas pelo CNPq. De fato, a participação das mulheres está aumentando, mas a passos muito lentos. Atualmente, metade das bolsas está nas mãos de mulheres — contra 30% no fim dos anos 90. Entretanto, entre os detentores das bolsas sêniores, apenas 23,5% são do sexo feminino (eram 17% em 1999).

Ainda assim, Duília conseguiu se tornar uma “astrofísica extragaláctica”, como está assinalado no prêmio, e trabalhar na Nasa. Nada mal para uma mulher nascida nos anos 60 em Jundiaí, no interior de São Paulo, que passou a infância no subúrbio carioca de Brás de Pina.

— Sempre fui apaixonada pelo Universo e, desde pequena, queria entender como ele funcionava tão bem sendo tão complexo — contou numa entrevista. — No fim dos anos 1970 eu vivia vidrada nas descobertas das naves espaciais da Nasa, Pioneer 10 e 11, que estavam visitando Júpiter e Saturno. Naquela época não tínhamos internet, e o acesso à informação era bem restrito, principalmente para quem era de classe média baixa, como nós.

No entanto, Duília trabalha há onze anos na Nasa, foi responsável pela descoberta da supernova SN 1997D e participou também da descoberta das chamadas bolhas azuis — as estrelas órfãs, sem galáxias.

— Em 2008, detectamos umas bolhas azuis, estrelas solitárias que vivem entre as galáxias, formadas fora das galáxias. Tanto podem ser pequenos aglomerados de estrelas como galáxias anãs, que podem acabar engolidas pelas galáxias vizinhas. Enfim, é um mecanismo interessante de pensar a evolução das galáxias — Duília explica.

A despeito das dificuldades, ela teve o que muitas meninas não têm: a liberdade de sonhar poder ser qualquer coisa, de não ser levada a reproduzir estereótipos de gênero. Não é simples como parece.

— Os brinquedos que ainda hoje damos às crianças são uma forma de manter a organização da família da mesma forma como ela está construída há séculos — explica Hildete. — A princesa remete à ideia do príncipe encantado, do casamento como o grande upgrade da vida. A boneca é a forma de domesticar a mulher para o cuidado. Para os meninos, damos canhões, automóveis, aviões. Ou seja, são formas de socializar os bebês para os papéis sociais referidos que eles deverão cumprir.

Além disso, há a questão da maternidade e da criação dos filhos.

— Os homens não dividem os encargos da maternidade até hoje — constata Hildete. — E, ainda que elas possam pagar por creches, socialmente têm uma dificuldade muito grande. O reconhecimento social da mulher passa pela maternidade. E isso não é só no Brasil, é um problema recorrente no mundo todo.

Diretora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e vencedora do Prêmio Loreal/Unesco ano passado, Márcia Cristina Bernardes Barbosa, de 54 anos, constatou isso ao participar de um projeto sobre a questão de gênero organizado pela União Internacional de Ciências, que contou com grupos de trabalho em 75 países.

— O problema é comum às mais diferentes culturas — diz. — E tem a ver com algumas características da carreira. Por exemplo, há uma demanda grande por viajar, e as mulheres são as responsáveis por cuidar dos filhos, dos idosos, da casa. Outra característica importante é que é preciso ser agressivo. Por último, são carreiras que demandam avaliação constante, exigem um número de publicações. É óbvio que quando elas têm filhos não conseguem a mesma produtividade.

A genética em questão

A questão é tão recorrente que se chegou a cogitar se haveria alguma explicação genética para a uma suposta “aversão” das mulheres a área de exatas.

A melhor resposta para isso veio de um homem, o astrofísico Neil deGrasse Tyson, num vídeo que faz sucesso nas redes sociais: “Eu nunca fui mulher, mas fui negro a minha vida toda”, disse ele. “Mas há similaridades na questão do acesso a oportunidades para negros e mulheres numa sociedade dominada por homens brancos.”

“Eu queria ser astrofísico desde os 9 anos. E via como o mundo ao redor reagia quando eu expressava essa ambição. Os professores retrucavam: mas você não quer ser atleta, não quer ser outra coisa? Eu queria algo que estava fora do paradigma das expectativas daqueles que estavam no poder. As forças da sociedade agem. Então, se não temos muitos negros na ciência, sei que é porque essas forças são reais e tive que superá-las para estar aqui. Portanto, antes de começarmos a falar sobre diferenças genéticas entre homens e mulheres, temos de encontrar um sistema de oportunidades iguais. Aí, sim, poderemos ter essa conversa.”

Fonte: O Globo, 13/06/2014, por Roberta Jansen
 


Publicado originalmente em julho de 2014 neste blog

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