sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Sobre o terrorismo islâmico: Se tentasse virar Sonia num país islâmico o cartunista indulgente com assassinos não chegaria ao fim da primeira maquiagem


Se tentasse virar Sonia num país islâmico o cartunista indulgente com assassinos não chegaria ao fim da primeira maquiagem

por Augusto Nunes

O universitário Laerte Coutinho, com quem convivi por dois anos na Escola de Comunicações e Artes da USP, já refletia no traço e no conteúdo a influência do cartunista Georges Wolinski, uma das vítimas do ataque terrorista à redação do Charlie Hebdo. Discípulo aplicado de um mestre do humor anárquico, era impiedosamente irônico com qualquer tema ou personagem colocados na mira do seu lápis. A escolha do alvo passava ao largo de opções políticas, ideológicas ou religiosas. Tudo e todos podiam virar piada.

Nos anos seguintes, os charges, quadrinhos e cartuns que o transformariam em celebridade ficaram mais refinados e inventivos. Mas o profissional famoso foi essencialmente uma continuação do amador que admirava Wolinski até que, 2004, o cartunista que debochava da tribo dos engajados se apaixonou pela causa dos transgêneros. Passou a usar trajes femininos, concedeu-se o direito de acesso ao banheiro das mulheres e acabou virando “Sônia”. Assim começou a agonia do Laerte que conheci. A morte foi consumada pela reação de Sônia ao espetáculo do horror protagonizado em Paris por fundamentalistas islâmicos.

A perplexidade provocada pela execução do octogenário Wolinski talvez tivesse ressuscitado o cartunista que disparava charges em todas as direções se o discurso de adeus não fosse interrompido por Sônia antes que a temperatura chegasse ao ponto de combustão. “O ruim é que tudo isso vai fortalecer a direita”, advertiu a voz suave. No mundo binário em que vive a estranha entidade, só existem esquerda e direita. Se os franceses alarmados com o crescimento da comunidade islâmica são de direita, deve-se deduzir que é de esquerda, como Sônia, gente que metralha quem ousa ironizar figuras sagradas e morre acreditando que vai acordar num céu atulhado de virgens.

Nesta terça-feira, enquanto milhões de manifestantes se juntavam na portentosa ofensiva contra o primitivismo liberticida, a charge na segunda página da Folha confirmou que a mudança operada no autor foi muito além da troca de calças por saias. Assinada por um Laerte que já não há, a obra parida por Sonia se divide em dois quadrinhos. No primeiro, alguns vultos planejam numa sala da redação a edição seguinte, que se concentraria no monumento à boçalidade homicida. A dúvida sobre o que deveria ser destacado na capa é desfeita no segundo quadrinho, que reproduz a capa em que VEJA revelou que Lula e Dilma sabiam do que ocorria nas catacumbas da Petrobras.

O Laerte que não depilava o corpo enquadraria os carrascos. A ativista Sonia insinua que os colegas do Charlie Hebdo estariam vivos se fossem mais ajuizados. É sempre um perigo mexer com fanáticos que não sorriem. O desfecho sangrento seria evitado caso tivessem optado pela autocensura e proibido a entrada do profeta Maomé nas páginas do semanário. Em troca da sobrevivência, só perderiam a honra. O Laerte de antigamente estaria traduzindo charges ferozes a indignação com a tentativa de assassinato da liberdade de expressão ocorrida em Paris. Sônia ficou por aqui, concebendo o trucidamento simultâneo do jornalismo independente e da verdade.

A mão que rabiscou a vigarice obedece a uma cabeça em tumulto. Compassiva com matadores de humoristas, odeia a altivez da revista que, por cumprir sem medo a missão de informar o que efetivamente ocorreu, apressou o desmantelamento da quadrilha do Petrolão. Até terça-feira, o maior e mais abrangente esquema corrupto da história do Brasil havia merecido uma única e escassa charge da companheira Sônia. A primeira misturou a carnificina em Paris com a roubalheira na Petrobras para excluir Lula e Dilma do caso de polícia — e endereçar a quem noticia um crime a ironia que o extinto Laerte reservava aos criminosos.

Tudo somado, está claro que o cartunista já não sabe o que diz ou desenha. Laerte-Sônia ignora, por exemplo, como são as coisas no mundo islâmico. Nem desconfia que, se tentasse virar mulher por lá, não chegaria ao fim da primeira maquiagem.

Fonte: Veja, 15/01/2015

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