terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: Viva a falta de respeito, humor não é ofensivo

Viva a falta de respeito, humor não é ofensivo

por Gregorio Duvidier

Colunista da Folha defende cartunistas do jornal francês "Charlie Hebdo", que "morreram pela nossa liberdade"

Muitos dizem que charges eram islamofóbicas, porém embate não era entre franceses e não franceses, mas entre humor e fanatismo

Um dos problemas de morrer é esse: vão falar muita asneira a seu respeito. E você já nem pode se defender. Não bastou serem fuzilados, os cartunistas do "Charlie Hebdo" foram vítimas de um massacre póstumo.

Pessoas de todas as áreas de atuação lamentaram a tragédia, MAS (não entendo como alguém, nesse caso, consegue colocar um "MAS") lembraram que o humor que eles faziam era altamente "ofensivo".

Poucas coisas irritam mais do que a vagueza desse termo "ofensivo" quando usado intransitivamente. Ofensivo a quem? A mim, definitivamente, não era. "Eles não deviam ter brincado com o sagrado", alegam alguns. MAS (aqui sim cabe um "mas") o que define o humor é exatamente isso: a brincadeira com o sagrado.

Discordo de quem pede respeito pelo sagrado. Para começar, acho que a palavra respeito é uma palavra que não cabe. Uma vez, vi o Zé Celso pedir a um jovem ator que não o tratasse por "o senhor", mas por "você". O ator disse que não conseguia porque tinha muito respeito por ele. E ele respondeu: "Não me interessa o respeito. O que me interessa é a adoração.".

O espaço da arte não é o espaço do respeito, mas o espaço da subversão, ou então da reverência, do culto. Do respeito, nunca.

No mais, tudo é sagrado para alguém no mundo. A maconha, a vaca, a santa de madeira, o Daime, Jesus e Maomé: tudo merece a mesma quantidade de respeito, e de falta de respeito.

Esperava essa reação raivosa dos fanáticos religiosos. No Brasil, o fundamentalista prefere os meios oficiais: não usa metralhadoras, mas tem bancada no Congresso e milhões no exterior.

Muitos (dentre os quais o pastor Marco Feliciano) já externaram o desejo de que o Porta dos Fundos "brincasse com islamismo pra ver o que é bom pra tosse". Até nisso temos complexo de vira-lata: nosso fundamentalismo tem inveja do deles.

O que nunca imaginei era que a mesma reação de "fizeram por merecer" partiria da própria esquerda. Muitos condenaram as charges como sendo islamofóbicas e lembraram que os imigrantes islâmicos já sofrem preconceito demais na França.

Mas esses imigrantes não eram os alvos, definitivamente, do humor do cartunistas assassinados. O embate não era entre franceses e não franceses, mas entre humor e fanatismo.

O traço infantil talvez confunda o leitor desavisado, mas é bom lembrar que as charges do "Charlie Hebdo" não tinham nada de ingênuas: eram facas afiadas na goela do ódio.

As coletâneas de capas do semanário sobre islamismo fazem parecer que esse era o grande tema do jornal. Não era. O jornal atirava para todos os lados, mas o alvo preferido era justamente a extrema direita de Le Pen --esse sim, islamofóbico.

Os chargistas que, mesmo ameaçados, não baixaram o tom, não devem ser tratados como pivetes malcriados que "fizeram por merecer", mas como artistas brilhantes que morreram pela nossa liberdade. Nosso dever é continuar lutando por ela, sem fazer concessões nem perder aquele ingrediente essencial: a falta de respeito pelo ódio.

A questão por trás disso tudo é a mesma de sempre: existe limite para o humor? A questão é complexa, mas a melhor resposta parece ser a seguinte: o limite está no objeto do riso. Rir de quem está por baixo é covarde, rir de quem está por cima é corajoso. Deve-se rir do opressor, e não do oprimido.

O problema é que essa resposta gera novas perguntas. Quem é o oprimido? Quem é o opressor? Muitas vezes, essa distinção não é clara.

Uma dica: quando surgir a dúvida sobre quem é o oprimido e quem é opressor, em geral, o indivíduo que foi fuzilado é o oprimido.

Fonte: Folha de São Paulo, 11 de janeiro de 2015

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