sábado, 17 de janeiro de 2015

Retrospectiva 2014: O Liberalismo, que nasceu à esquerda, precisa voltar às suas raízes.


Registro aqui parte do resgate, feito pelo colunista do site Mercado Popular, Rodrigo Viana, da história da doutrina liberal, que realmente nasceu à esquerda, embora hoje seja tida como de direita. Deixo link para o texto integral, intitulado Liberalismo, a primeira esquerda, ao fim do texto. 

Viana identifica o liberalismo à esquerda porque a ela se costuma atribuir, como filha do Iluminismo, o anseio por mudanças, a crença otimista na razão e na capacidade humanas de moldar o seu destino e construir uma vida social mais justa e próspera. Nesse sentido, o liberalismo comunga, em espírito ao menos, com o socialismo. Em oposição a ambos, estaria o conservadorismo, com seu pessimismo quanto a qualquer tipo de reforma ou inovação estrutural na sociedade que não esteja realmente firmado numa continuidade.

Concordo com o autor quanto à identificação do liberalismo como doutrina de esquerda por seu anseio de mudanças. Aliás, nem há como discordar com tal abordagem por tratar-se de fato histórico. Discordo, contudo, da tese de que só haveria, em política, ou esquerda ou direita, o que corresponderia aos temperamentos humanos ou otimista ou pessimista. Ele chega a afirmar que "Na filosofia política não tem espaço para centro. Ou é x ou y." Embora não tome essas dicotomia a ferro e fogo, Viana não consegue escapar do maniqueísmo que lhe é intrínseco.

De fato, entre os temperamentos otimista e pessimista existe o temperamento realista que corresponde ao centro político. Como na velha piada, enquanto o otimista celebra o fato do copo estar meio cheio e o pessimista lastima que esteja meio vazio, o realista examina o conteúdo do copo, constata que é potável e o toma. Vale lembrar que o liberalismo, com o advento de seu meio-irmão psicologicamente instável, o socialismo, foi empurrado para o centro do espectro político e de lá sequestrado pelos conservadores, de fato seus antônimos anímicos, daí a figurar hoje como de direita. Uma verdadeira heresia, na minha opinião.

Cabe portanto, resgatar sim as raízes de esquerda do liberalismo, mas para permitir-lhe ser uma alternativa de esquerda ao seu irmão socialismo, que perdeu a Razão, e ao conservadorismo medroso e pessimista que leva ao imobilismo. E não como forma de reatar laços com o socialismo devido à origem comum.

A influência dos movimento iluministas e contra-revolucionários

por Rodrigo Viana

É sabido que os pensamentos políticos que vieram a ser influenciados diretamente pelos movimentos iluministas (ou Era da Razão) podem ser descritos facilmente como “esquerdistas”. Isto é, pensamentos de caráter visionário e de natureza opositora à perspectiva pessimista, mais preocupado em mudanças reformadoras e/ ou inovadoras. Estes pensamentos deram novas formas de reflexão na relação entre o ser humano e a sociedade. Resultando em ideias, possibilidades e alternativas sobre o estado em que se encontra a sociedade. E o liberalismo não apenas se encaixa nessa perspectiva, como foi o primeiro pensamento político a inaugurar de fato o que vinha sendo produzido nos círculos iluministas.

Uma vez a filosofia liberal sendo obra destes movimentos, em maior parte dos que se seguiram nos séculos dezessete e dezoito e em menor no dezenove, é natural que o liberal defenda a ideia de que o ser humano possui os instrumentos necessários para guiar o seu próprio destino no alcance de uma vida social mais justa e próspera. A crença iluminista pela busca por um mundo melhor é também um importante componente muito presente no liberalismo. E o que responde esse questionamento senão premissas como o respeito ao indivíduo enquanto um ser único tendo fim em si mesmo; direitos inalienáveis sobre a vida, liberdade e propriedade; igualdade de autoridade; poder político limitado; e sociedade tolerante?

Ora, existe um aspecto ativo dentro de qualquer pensamento enraizado nos movimentos iluministas. Esse aspecto é o impulso que motiva o liberal a não aceitar o mundo da forma como se encontra. Ele deseja a mudança e isso o motiva a buscar o que pretende. E isso independe da vertente que o liberal se apoia, seja ela no liberalismo clássico de Robert Nozick e Ludwig von Mises, no liberalismo social de John M. Keynes e John Rawls ou no liberalismo radical de Murray Rothbard e David Friedman. O liberal deseja aprimorar, transformar e tornar mais justo as relações humanas.

Isso é notório ao comparar com uma outra importante filosofia política também de origem iluminista: o socialismo. Mas antes abro um parêntese: do mesmo modo que falo do liberalismo em uma maneira ampla e sem levar em conta suas vertentes internas, assim falo do socialismo. Quer dizer, a filosofia política que também gerou diversas teorias e correntes próprias para buscar soluções para as relações sociais.

Tudo isso significa que as bases do pensamento socialista são tranquilamente compartilhadas por liberais, uma vez que foram os movimentos iluministas quem as forneceram. Como e por qual fim utilizar tais ferramentas é o que também distingue estas filosofias políticas. Podemos ver isso na interpretação que cada filosofia (e suas correntes internas) dá às ideias de liberdade, igualdade ou justiça, por exemplo. Do mesmo modo que individualismo necessariamente não significa “supressão do indivíduo para com outro indivíduo”, assim também é em relação ao coletivismo com a ideia da “supressão do coletivo sobre o indivíduo”. Nem todo socialista é coletivista, como nem todo coletivista é anti-indivíduo. É muito importante mencionar tais fatores porque isso faz cair por terra a errônea crença popular de que “direita é pró-indivíduo e esquerda pró-coletivo”.

Bom, é sabido que liberais e socialistas são os descendentes dos iluministas e comungam da perspectiva otimista de interpretar o mundo enquanto entidade social. Então que movimento defendia a perspectiva pessimista e quem são seus descendentes hoje?

Quando analisamos o período histórico do nascimento das teorias políticas modernas entre o final da Idade Média e início da Idade Moderna, não podemos nos esquecer do não menos importante movimento político chamado Contra-revolução. Movimento este presente em vários países europeus, porém de atuação mais expressiva na França. As ideias desse movimento faziam parte do corpo teórico defendido pelo absolutistas monárquicos, dos quais são os antepassados diretos dos conservadores modernos.

Por terem um ceticismo perante as reivindicações “idealistas” defendidas pelos primeiros liberais e socialistas, os absolutistas eram “impedidos” pelo pessimismo característico de vislumbrar qualquer tipo de reforma ou inovação estrutural na sociedade que não estivesse realmente se firmado numa continuidade. Tanto a democracia liberal, quanto o socialismo de estado ou o anarquismo eram concepções vistas por muitos como uma forma artificial, pois contava com construções teóricas que exigiam um certo grau de confiança abstrata referente ao funcionamento da sociedade e/ ou da própria natureza humana. Por exemplo, para alguns absolutistas a simples ideia da não existência de um governo regido pela hereditariedade soava como “anti-natural”.

Vale comentar que, por diversas particularidades, a Inglaterra não teve um movimento tão expressivo em favor do absolutismo como foi em outras partes da Europa. A ideia de um estado absoluto não era muito bem vista até por aqueles que compartilhavam da perspectiva pessimista. Esse grupo de pessimistas influenciou enormemente o pensamento conservador atual, sobretudo o de origem anglo-saxônica, pois diferencia consideravelmente na forma de se fazer política (mas não as bases filosóficas) dos conservadores mais apegados às lições pelos antigos apoiadores do absolutismo. Da mesma forma que os iluministas tiveram suas diferenças, os contra-revolucionários também tiveram.

Hoje os tempos são outros. Não existe mais grupos defendendo um retorno ao regime absolutista. Os conservadores, que carregam o pessimismo dos contra-revolucionários, já aceitaram a democracia liberal como um sistema de governo estável. Estando o norte conservador na preservação de princípios civilizacionais e das instituições políticas, os meios de como eles serão alcançados pouco importa no âmbito filosófico, seja através de uma forte intromissão governamental ou pela defesa da autonomia e da liberdade das comunidades. Mudança moderada ou radical nunca foi empecilho para o conservador firmar o tradicionalismo, dado que a natureza de sua mudança visada é de caráter mantenedora e não inovadora. Então podemos ver que o conservadorismo pode tanto tender para o autoritarismo, típico dos absolutistas, quanto a uma versão mais tolerante, presente nas ideias dos whigs moderados da Inglaterra. Nível de presença do governo na sociedade não é fator determinante para o espectro político. Nunca foi.

Como as ideias liberais, de uma forma geral, prevaleceram no mundo, é natural que hoje os conservadores defendam muitas delas, dando a impressão de que, a partir de agora, eles “se tornaram liberais”. Não se tornaram. O DNA pessimista ainda é o fator que guia a defesa das estruturas sociais consolidadas e tradicionais do pensamento conservador e não o gene otimista. Ou por acaso social-democratas modernos se tornaram liberais só porque largaram de vez a ideia do estado proletariado para abraçar a democracia liberal? Indo direto ao ponto, um conservador “é tão liberal” quanto um social-democrata, embora este último esteja muito mais próximo da filosofia liberal do que o primeiro por assuntos já comentados anteriormente.

Um adendo

Querer resumir os movimentos iluministas como se fossem apenas “movimentos políticos” é uma interpretação que não se sustenta. Estes movimentos foram muito mais do que expressão política propriamente dita, foram a expressão viva do ser humano em todas as suas relações. Os iluministas influenciaram as ciências naturais, as artes, a educação e forma de passar conhecimento e muitas outras coisas. Ajudaram a florescer verdadeiros debates religiosos, literários e ajudou na ideia da disseminação do conhecimento, seja através do livro ou da imprensa. Suas ideias desafiantes mexiam com a opinião pública, esclareciam conceitos baseados apenas em meras tradições ao ponto de chocar e escandalizar a sociedade com suas opiniões diferenciadas.

Estes senhores (e senhoras também) mudaram o mundo de tal maneira que, em poucos séculos, toda a sociedade deu saltos gigantescos na civilização para melhor. O que não quer dizer que tudo ocorreu como planejado, mas ainda assim vivemos bem melhor do que qualquer época já registrada. Diferente de hoje, em que podemos ver o mundo de nossos avós bem diferente, em séculos passados o que prevalecia era a mesmice. Essa é a perspectiva atuante que gira o mundo. O mundo não é feito por covardes, mas por gente que se arrisca, que questiona ou que sonha. Esse é o grande legado deixado pelos iluministas.

Conclusão

O liberalismo, enquanto filosofia, ainda é uma ideia radical, visionária, inovadora e, em certas vertentes internas, revolucionária. Desde o seu surgimento ele vem propondo ideias e alternativas que colocam em xeque o modo de ver a sociedade baseada na continuidade tradicional. A alegação da ideia do indivíduo como senhor de si é ainda revolucionária mesmo hoje. Estes ensinamentos iluministas também se mantém bem presentes nas vertentes libertárias do socialismo (anarquismo).

Um problema que eu vejo hoje está em enxergar as teorias e tendências políticas de origem direta no marxismo ou não (socialismo fabiano) da era pós-comunismo, quase que de forma exclusiva como “a esquerda”. Não tenho nenhum problema em classificar esta ou aquela prática, vertente ou proposta política como “de esquerda ou de direita” para dar a noção de algo moderado ou radical, de pouco ou mais inovador ou coisa do tipo dentro da realpolitik.

O problema é quando esses conceitos superficiais se transformam em um tipo de regra que envolve as filosofias políticas em si, pois tendem a ficar deturpadas e viciadas. Dado que isso tende a renegar aspectos teóricos e históricos, um estudante com uma maior bagagem cultural sobre filosofia política poderá se atrapalhar e não entender pontos muito mais importantes. A divisão entre “proletariado x burguês” do pré-comunismo e o “capitalismo x socialismo” da Guerra Fria é tão somente um fator histórico que não deve ser levado tanto em conta para os estudos das filosofias políticas. A ciência política pode lidar com isso de uma forma mais elegante.

Se os liberais franceses, antes da ascensão dos partidos de raiz socialista, eram vistos como os progressistas, esquerdistas no século dezenove e hoje são visto como direitistas, muito se deve a ideias particulares deste ou daquele autor, como também das próprias formas como as propostas políticas foram empregadas. Independente ser de cunho liberal ou não. O fato dos liberais terem se aproximado dos conservadores no século vinte para a contenção do marxismo é tão somente um fator circunstancial.

Será mesmo que os liberais não se manteriam próximos dos socialistas caso as vertentes libertárias deste último tivessem se sobressaído como influência maior no mundo, empurrando o socialismo estatista de Marx para os becos da intelectualidade? Bem, a história mostra que liberais e socialistas ficaram juntos na França quando os dois ainda mantinham propostas parecidas. Dado que parte da tradição socialista se radicalizou em prol da liberdade no século dezenove e o liberalismo no século vinte, soa até previsível que estas duas linhagens mantenham novamente laços próximos no século vinte um.

Liberalismo e socialismo, enquanto filosofia, possuem um ancestral comum e a tendência que eu acredito hoje está neles se reatarem como em séculos atrás, visto que as ideologias fortemente estatistas e/ ou autoritárias tão presentes no século vinte tem estado perdendo força nas últimas décadas. Sim, os dois pensamentos surgiram em épocas próximas, embora o liberalismo tenha vindo antes. É por isso que o liberalismo foi a primeira esquerda.

Agradecimentos especiais pelas contribuições feitas por Adriel Santana.

Fonte: Mercado Popular, 02/06/2014, Liberalismo, a primeira esquerda

Publicado originalmente em 17/06/2014

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