quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Retrospectiva 2014: La Quenelle: enquanto a América Latina sofre com a extrema-esquerda, a Europa vê renascer a extrema-direita

Atacante francês Anelka faz a quenelle em jogo na Inglaterra (21/01/2014)
Enquanto a América Latina sofre com as viúvas do Muro de Berlim, determinadas a recriar localmente uma espécie de união das repúblicas socialistas latino-americanas, ironicamente em conluio com grandes capitalistas, a Europa vê renascer a extrema-direita no contexto da crise econômica que afeta o continente. Racismo, sexismo, xenofobia, homofobia aparecem camuflados por uma suposta defesa da família tradicional, mantra que os conservadores entoam através dos tempos como desculpa esfarrapada para justificar sua incapacidade de aceitar a igualdade de oportunidades e direitos entre os seres humanos. 

Na França, inventaram até uma versão estilizada do famigerado gesto nazista chamada La Quenelle (ver fotos e vídeo abaixo sobre essa inovação nada elegante dos franceses). Tentam passar ao público a versão de que se trata apenas de um gesto contra o sistema, o governo, os políticos, uma espécie de "vai tomar no cu" ou "foda-se" generalizado. Entretanto, seu inventor, o comediante Dieudonné M’bala M’bala é conhecido por suas piadas contra judeus e discípulo de Alain Soral, um autoproclamado nacional-socialista, “teórico” dos grupos fascistas franceses, há anos insultando gays, feministas e judeus.

Dieudonné e Anelka (negros nazis!?)
Impressionante como a humanidade não aprende e de como a mentalidade autoritária, diga-se de esquerda ou direita, volta e meia retorna ao centro do palco. Filha da estupidez e do medo, ela não é desprivilégio de nenhum grupo em particular. Basta ver que o comediante que inventou o lastimável gesto é negro bem como o jogador de futebol, atacante francês Nicolas Anelka, que o reproduziu em partida contra um time inglês (sendo inclusive processado por isso).

De fato, a história da humanidade às vezes me parece  uma longa noite tempestuosa iluminada vez ou outra somente pelo clarão de algum raio. Para não terminar de forma pessimista, cumpre bradar um "libertários uni-vos" porque a corja autoritária está de novo a toda. 

Intolerância
Uma França usualmente silenciosa está há três semanas nas ruas, gritando sua raiva. A guerra cultural causa mais estragos em tempos de crise, momento favorável a extremismos 


“Fora judeu.” Este grito pavoroso ecoou pelas ruas de Paris e Lyon domingo, pela primeira vez desde a época da França ocupada pelos nazistas na II Guerra Mundial. Foi ouvido durante manifestações em que se misturavam católicos ortodoxos, muçulmanos radicais, extrema-direita, grupos racistas e respeitáveis partidos de direita, todos unidos na suposta defesa da “família tradicional” que degenerou numa demonstração de racismo, xenofobia e homofobia. E, pior, o governo socialista cedeu às pressões desta versão francesa do Tea Party americano e adiou o debate sobre a nova lei da família para 2015.
É lamentável a débil reação dos partidos republicanos e a degeneração do debate político”, disse, escandalizado, o filósofo Roberto Badinter, ex-ministro da Justiça do governo Mitterrand.
Uma França tradicionalmente silenciosa está há três semanas nas ruas, gritando sua raiva. É bem diferente da França que a gente gosta e admira pela defesa da liberdade, a diversidade do pensamento e o elegante savoir vivre. Herdeira da direita antissemita, esta fatia da sociedade francesa radicaliza-se a cada domingo e acrescenta novas reivindicações em sua agenda centrada na defesa de valores ultraconservadores e no repúdio aos não iguais. Pede a revogação da lei do casamento gay, é contra a reafirmação da lei do aborto - prevista neste novo código da família - e agora organiza um boicote às escolas sob o argumento de que uma tal de “teoria de gênero” ensinaria as crianças a serem transsexuais e homossexuais. Acusam o governo de ser fobicamente contra a família e de se inclinar diante do lobby LGBT.

Delírios, claro. O mais recente alvo da ira deste grupo ultra conservador é o ABCD da Igualdade, uma inovação acrescentada experimentalmente ao currículo de 600 escolas. O ministro da Educação exaustivamente explicou que se tratava de promover os valores da República e da igualdade entre homens e mulheres, mas foi considerada pelos ultras como “uma maneira de diluir a ligação entre pai, mãe e filho” e contra a alteridade “homem e mulher”. Com a complacência da UMP - partido de oposição - a campanha para boicotar as escolas no dia do ABCD da Igualdade cresceu e chegou a deixar fora das salas de aula 40% das crianças em várias cidades francesas.
O contexto é favorável ao crescimento da extrema-direita, os meios populares são receptivos aos slogans da Frente Nacional”, diz Bruno Cautrés, da Sciences-Po.
Para onde vai a França? Um vento torto está levando o país para a radicalização. O sentimento de pessimismo domina os franceses diante da constatação de que empregos, poder e ideias estão migrando para lugares mais acolhedores e dinâmicos. Nesta França que procura seu novo papel no século XXI, cada tentativa de mudar os contornos da vida em sociedade é vista como uma agressão por uma parte dos cidadãos, especialmente os religiosos, sejam eles muçulmanos radicais ou católicos ortodoxos. A guerra cultural americana, que há décadas divide o país, trava-se também há anos na Europa, mas causa mais estragos num momento favorável a extremismos, estimulados pela crise econômica e por líderes políticos fracos, como François Hollande na França e Mariano Rajoy na Espanha.

Personagens nefastos contam com inesperada popularidade, como o cômico Dieudonné com seus insultos aos judeus e a popularização da quenelle, um gesto de saudação nazista estilizado. Seus espetáculos estão proibidos na França e esta semana ele foi impedido de entrar no Reino Unido, mas tirou das sombras seu inspirador: Alain Soral, que se autoproclama nacional-socialista, “teórico” dos grupos fascistas franceses, há anos insultando gays, feministas e judeus mas devidamente colocado no ostracismo. Aproveitou a mobilização contra o casamento gay para se relançar e reativar seu blog odioso em que faz publicidade da literatura nazista.
Esta França que repudia o outro - seja o imigrante europeu pobre, o judeu ou árabe - sempre existiu, mas era minoritária e agora acha mais canais de expressão”, diz o jornalista Jean Marie Colombani em artigo no “El País”.
Este mês tem eleições municipais na França, em maio para o Parlamento Europeu, e os prognósticos são de que a extrema-direita vai crescer nas cidades francesas e também pode formar uma bancada em Bruxelas. A direita tradicional, que deixou o poder há apenas dois anos e pretende voltar, está estimulando a radicalização dos movimentos de direita, fazendo das questões de família uma arma política. Esta estratégia, nós brasileiros, conhecemos, e não queremos ver esse filme de novo: há 50 anos, a Marcha da Família pela Liberdade antecedeu o golpe de 64.

Na Europa, a intolerância já causou duas guerras.. 


Fonte:
O Globo, Helena Celestino, 05/02/2014

Publicado originalmente em 12/02/2014

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