8 de Março:

A origem revisitada do Dia Internacional da Mulher

Mulheres samurais

no Japão medieval

Quando Deus era mulher:

sociedades mais pacíficas e participativas

Aserá,

a esposa de Deus que foi apagada da História

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Marta Suplicy cansou de ser deixada de lado e virou oposição à Dilma e ao PT

Marta nunca engoliu ter sido preterida por Dilma
Marta Sucplicy parece realmente estar dando adeus ao PT, já que novamente veio a público meter o relho em Dilma e em seu próprio partido por extensão. No artigo "O diretor sumiu", publicado ontem na Folha de São Paulo, Marta afirma que a falta de transparência de Dilma na economia levou à lastimável situação de nossas finanças :
se tivesse havido transparência na condução da economia no governo Dilma, dificilmente a presidente teria aprofundado os erros que nos trouxeram a esta situação de descalabro. Não estaríamos agora tendo de viver o aumento desmedido das tarifas, a volta do desemprego, a diminuição de direitos trabalhistas, a inflação, o aumento consecutivo dos juros, a falta de investimentos e o aumento de impostos, fazendo a vaca engasgar de tanto tossir.
Marta também declara que Dilma fez estelionato eleitoral, enganando inclusive o fanático eleitorado petista:
Havia uma grande expectativa a respeito do perfil da equipe econômica que a presidenta Dilma Rousseff escolheria. Sem nenhuma explicação, nomeia-se um ministro da Fazenda que agradaria ao mercado e à oposição. O simpatizante do PT não entende o porquê. Se tudo ia bem, era necessário alguém para implementar ajustes e medidas tão duras e negadas na campanha? Nenhuma explicação.
Imagina-se que a presidenta apoie o ministro da Fazenda e os demais integrantes da equipe econômica. É óbvio que ela sabe o tamanho das maldades que estão sendo implementadas para consertar a situação que, na realidade, não é nada rósea como foi apresentada na eleição. 
Agora, mirando o próprio PT, Marta declara que o partido está em autofagia (a Fundação Perseu Abramo, do PT, o partido e parlamentares petistas não apoiam Dilma) e também cometeu estelionato eleitoral:
O PT vive situação complexa, pois embarcou no circo de malabarismos econômicos, prometeu, durante a campanha, um futuro sem agruras, omitiu-se na apresentação de um projeto de nação para o país, mas agora está atarantado sob sérias denúncias de corrupção.
Nada foi explicado ao povo brasileiro, que já sente e sofre as consequências e acompanha atônito um estado de total ausência de transparência, absoluta incoerência entre a fala e o fazer, o que leva à falta de credibilidade e confiança.
E termina dizendo que a diretora do país sumiu exatamente nesse momento em que o país vive cenário dramático de crescente desemprego, somados à falta de energia e de água, problemas de locomoção, queda do poder aquisitivo, violência crescente, saúde precária, fora as obrigações financeiras de começo de ano.

Naturalmente, Marta agora posar de oposicionista não convence ninguém que tenha neurônios funcionando minimamente. Marta é petista histórica e sempre apoiu a política deletéria de seu partido no poder desde o início, até inclusive nas recém-findas eleições de 2014. Ao que tudo indica, cansou de ser preterida no próprio partido e está de malas prontas para outro (qual?) a fim de seguir suas pretensões eleitorais e de apoiar as pretensões eleitorais de outro (Lula?) que quer se dissociar de Dilma. É ver para crer. Não deixa de ser agradável, de qualquer forma, ver essa gente nociva comendo o próprio rabo.

Com informações da Folha de São Paulo

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Mude o mundo: seja amiga de uma mulher


7 razões para você empoderar uma garota ao invés de explicar feminismo para um cara

Destaque: As mulheres não têm obrigação de explicar o conceito de feminismo para os homens
"Para isso existe o Google, não é mesmo?", brinca. Não é que os homens não precisam ficar a par dessa luta, muito pelo contrário, mas eles jamais serão os protagonistas dessa batalha. Por isso, é preferível, de acordo com a idealizadora da campanha, perder energia e ganhar tempo dando força às garotas a gastar saliva explicando a um rapaz o porquê do movimento ser tão importante. "Enquanto isso, muitas mulheres também continuam sem entender o motivo e elas devem ser as principais impactadas", esclarece.

A CAPRICHO, em parceria com a idealizadora da campanha, listou 7 motivos para você empoderar duas amigas e contribuir com essa corrente do amor:

1. O empoderamento quebra barreiras
Quando você dá poder a uma amiga, você dá voz aos sentimentos dela. É como se você desse um voto de confiança e acreditasse nela para valer! Parece algo meio bobo, mas é desse jeitinho que você vai superando as barreiras pratriarcais que existem há séculos. "Empoderando você encoraja. Não existe corpo ideal ou garota ideal. Existe o que você quiser que exista", esclarece Maynara.

2. Empoderar é bem melhor que competir
Você já deve ter escutado um menino ou até mesmo uma colega de sala dizer que garotas não têm amigas, pois são muito competitivas e até se vestem para impressionar as rivais. Quando você dá poder a uma menina, você acaba com toda essa rivalidade e, acredite, vive mil vezes mais leve sem toda essa cobrança. Maynara explica o motivo: "ouvimos o tempo todo que mulher não pode ser isso e não pode fazer aquilo, para não ficar mal falada, e que deve cuidar do corpo de tal forma para deixá-lo de acordo com os padrões de beleza. O machismo faz com que as garotas vivam em constante competição, quando, na verdade, deveriam ser pura e simplesmente aliadas".

3. Apoiar outras garotas é o princípio básico do feminismo
"A troca de experiências conforta uma parte das mulheres que se sente incomodada com a opressão e faz com que a outra metade, que, eventualmente, ainda não consegue enxergar o quão machista é a nossa sociedade, sinta-se tocada", conta Maynara. Afinal, os homens não precisam lutar a favor do movimento. 

4. Compartilhar experiências te faz abrir os olhos
"Eu já tive meus 13, 15, 17 anos. Você precisa ser uma boa filha, estar dentro dos padrões, mas não exagerar para não ficar com má fama. Precisa agradar um namorado e trocar de roupa quando ele disser que aquela está muito curta. Conhecer seu corpo e se descobrir, pois dizem que é importante, mas fazer isso sem se sentir culpada depois. Não é fácil, mas quando você descobre que acontece igual com a amiga, fica menos aterrorizante", afirma May. A mesma coisa acontece quando você descobre que não foi a única assediada no metrô, que não foi a única que se sentiu invadida por uma cantada no meio da rua ou que foi agarrada por um menino sem noção na festa e ainda precisou sorrir para não parecer grossa. A troca de vivências, de conselhos, de amor, é a saída. 

5. As mulheres não têm obrigação de explicar o conceito de feminismo para os homens
"Para isso existe o Google, não é mesmo?", brinca. Não é que os homens não precisam ficar a par dessa luta, muito pelo contrário, mas eles jamais serão os protagonistas dessa batalha. Por isso, é preferível, de acordo com a idealizadora da campanha, perder energia e ganhar tempo dando força às garotas a gastar saliva explicando a um rapaz o porquê do movimento ser tão importante. "Enquanto isso, muitas mulheres também continuam sem entender o motivo e elas devem ser as principais impactadas", esclarece.

6. Opressor e oprimido nem sempre convivem em harmonia
Para não falar nunca! Isso é justificado por um simples fato: o privilegiado nunca quer abdicar de tudo aquilo que lhe favorece. Fica muito difícil incluir o opressor dentro de um movimento de oprimidos. É por isso que a campanha da Maynara é e sempre será de menina para menina. "Muitos caras se dizem feministas para agradar, mas, na prática, continuam fazendo tudo aquilo que os tornam machistas".

7. Você é a primeira pessoa que precisa se libertar de estereótipos
Quando alguém te coloca láááá em cima, você não fica com uma sensação de "eu posso, eu consigo"? É esse sentimento que, muitas vezes, te dá coragem para ir além, se abrir, se aceitar, lutar por um sonho. Teoricamente, você tem liberdade de se vestir do jeito que bem entender, ficar com quem quiser e quando sentir vontade, se depilar com cera, com lâmina ou até mesmo não depilar. Contudo, na prática, as coisas não são tão simples. Muitas vezes, a garota não se sente segura para tomar tal decisão. Autoestima é o primeiro passo para a quebra de paradigmas. Como já dizia Demi Lovato: "minha armadura é feita de aço. Você não pode entrar nela. Sou uma guerreira e você nunca poderá me machucar!"

Para curtir a página da campanha "Empodere Duas Mulheres" no Facebook e saber mais sobre ela, clique aqui.

Fonte: Capricho, por Isabella Otto, 25/01/2015

domingo, 25 de janeiro de 2015

Sobre o terrorismo islâmico: Parlamentares paquistaneses marcham…contra o Charlie Hebdo

Parlamentares paquistaneses marcham…contra o Charlie Hebdo
Enquanto isso na Arábia Saudita, no Paquistão, no…

Na mesma sexta-feira passada em que quatro judeus foram executados pelo terrorista islâmico Amedi Coulibaly em Paris, um muçulmano era punido em Jeddah, na Arábia Saudita. O blogueiro liberal Raif Badawi (liberal para os padrões sauditas) recebia as primeiras 50 chibatadas das mil de sua punição por “insultar o islamismo”, no espetáculo diante do centenas de fiéis fora da mesquita.

No ritual cruel, estão programadas 50 chibatadas a cada sexta-feira, além de 10 anos de prisão. Badawi apenas escapará de nova prestação de chibatadas se o médico concluir que ele não está em condições físicas para a flagelação devido aos ferimentos sofridos na primeira prestação.

Atualização às 11:53: A organização Anistia Internacional informou que as chibatadas desta sexta-feira foram adiadas para a semana que vem por recomendações médicas.

Os dois massacres em Paris na semana passada (Charlie Hebdo e supermercado judaico) clamam mais uma vez a necessidade de um franco debate no islamismo sobre fé e tolerância. No entanto, Badawi está sendo punido publicamente por ter aberto um debate público sobre a modernização do islamismo. Como pensar na modernização de uma religião quando um dos seus centros mais influentes e ricos, como o reino saudita, açoita as esperanças?

O geriátrico reino saudita é um complicado aliado do Ocidente (e de suas democracias liberais) e, de fato, combate grupos terroristas como Estado Islâmico e Al Qaeda, além de costurar uma aliança de necessidade com Israel em um Oriente Médio tão turbulento. No entanto, como escreve Nicholas Kristof, no New York Times, os sauditas dão legitimidade ao fundamentalismo e à intolerância.

Velho e doente, o rei Abdullah nem poderia marchar em Paris como fizeram tantos outros dirigentes que tampouco poderiam ter ido ao boulevard Voltaire no domingo passado por falta de credibilidade. No seu país, não há liberdade de expressão e de religião. A Arábia Saudita é uma ditadura que financia escolas islâmicas extremistas e proíbe igrejas no país. A minoria xiita é perseguida na sunita Arábia Saudita.

Minorias muçulmanas e cristãos também são perseguidos no Paquistão, outro complicado aliado do Ocidente, localizado numa quebrada muito turbulenta do mundo.

Na quinta-feira, dezenas de parlamentares paquistaneses marcharam, não em solidariedade a cartunistas, judeus e policiais assassinados por terroristas em Paris, mas bradando “morte aos blasfemadores”, em alusão ao pessoal do Charlie Hebdo que publicou charges do profeta Maomé.

A marcha de 40 parlamentares em Islamabad foi liderada pelo ministro de Assuntos Religiosos Sardar Yousaf. Ele disse: “Todos os partidos políticos estão conosco. Todas as nações islâmicas deveriam condenar estas charges blasfematórias”. De quebra, o ministro recomendou o confisco e a queima de todos os exemplares de publicações que exibirem as charges.

Uma moção de condenação à publicação das charges foi aprovada de forma unânime no Parlamento do Paquistão. Se unanimidade fosse apenas burra. No Paquistão, ela é uma blasfêmia contra os direitos humanos.

Fonte: Veja, Caio Blinder, 16/01/2015

http://poracaso.com/arabia-saudita-declara-todos-os-ateus-sao-terroristas/

Sobre o terrorismo islâmico: Nascer para a liberdade

Nascer para a liberdade
por Fernando Gabeira

O atentado ao “Charlie Hebdo” me colheu num trabalho no Maranhão. Tive tempo ainda de escrever um artigo geral sobre o tema. Deixei para domingo, dia mais ameno, algumas reflexões pessoais. Bruscas mudanças no mundo, às vezes, nos levam a examinar nosso lugar nele. Minha família veio do Líbano, um país com histórico de conflitos religiosos. Eram cristãos, minha avó tinha cruzes tatuadas na testa e no braço. Isso sempre me impressionou e, ao longo dos anos, novos conflitos religiosos me parecem uma tristeza que não tem fim.

Por várias razões criei uma certa resistência em estudar o Islã. Cheguei a discursar sobre o perigo do Islã político, porque, mesmo sem estudá-lo a fundo, sinto que a fusão do estado com a religião sempre termina em prisão, tortura e morte. Ainda mais com visão tão estreita sobre mulher e sexualidade. Agora vejo, de todos os lados, uma advertência para dissociar o Islã da violência, sob o perigo de parecer racista e islamofóbico.

Essa advertência se articula com outra, sutil: a de que as religiões não devem ser criticadas, que elas devem ficar fora do raio de alcance da liberdade de expressão. Esse é o problema. Vivemos num mundo democrático em que a blasfêmia não é um crime. O “Charlie Hebdo”, de uma certa forma, mostrava onde o terrorismo se nutria no Islã. Num dos desenhos na porta do paraíso, Maomé advertia: parem com as bombas, estamos em falta de virgens.

É uma maneira de enfatizar como a visão do martírio e suas recompensas inspiram homens-bomba. De todos os discursos, o que mais mexeu com minha intuição foi o do presidente do Egito, que não só denunciou as interpretações do Islã, mas afirmou que era necessária uma revolução religiosa para integrá-lo na pluralidade do mundo moderno. A capacidade do Islã de se rever no mundo, algo que os católicos fazem, sem traumas, com o Papa Francisco, pode ser uma luz no fim desse longo túnel.

Alguns sinais animadores existem tanto na Europa como nos Estados Unidos, onde parte da comunidade islâmica define o terrorismo como inimigo comum. O combate direto ao Estado Islâmico é dado por muçulmanos que arriscam suas vidas. O número de mortos em atentados é muito maior na região do que no Ocidente. Mesmo com a derrota do terrorismo ainda ficaria no ar um ponto em que é difícil separar o islamismo da violência. O total enlace do estado com a religião tende a transformar os infiéis em criminosos.

A fatwa, pena de morte para o escritor Salman Rushdie, foi decretada por autoridades religiosas. Na Arábia Saudita, o blogueiro Ralf Badawi foi condenado a mil chibatadas. Minha hipótese sobre o Islã é a mesma que tenho sobre o marxismo. Muita gente diz que o marxismo é perfeito, mas os equívocos foram obra do socialismo realmente existente. Não havia nada errado com o texto, mas sim com os intérpretes. Como textos corretos podem levar a interpretações tão violentas e autoritárias? Não haverá alguma coisa neles que, de certa forma, estimula massacres?

No passado, concordava com Sartre na sua benevolência com as ações terroristas na Argélia. E rejeitava a posição de Camus. Hoje, compreendo que errei. O próprio Camus, em “Os justos”, mostra que os terroristas que iam matar o arquiduque Francisco Ferdinando, há um século, adiaram o ataque porque havia crianças na carruagem. Agora, estamos diante de terroristas que não se importam com a presença de crianças, sob o argumento de que crianças são mortas no Oriente Médio.

Jornais americanos não publicaram os desenhos do “Charlie Hebdo”. Dizem que seu estilo é outro, não publicam material contra religião. Mas, depois do atentado, é um erro jornalístico. Aqui no Brasil, mesmo com a clavícula quebrada, saí exibindo o filme “Je vous salue, Marie”. Não gostava tanto do filme, no final estava até meio cansado dele. O que estava em jogo não era minha afinidade com o filme de Godard. Claro que uma coisa é o contexto de “Je vous salue, Marie”, Sarney e Igreja Católica. Outra, Maomé e os radicais islâmicos. Nesse sentido, tive sorte quando minha avó com a cruz na testa fez a mala e veio para o Brasil. Mas o Brasil, através do seu governo, me desaponta nesse drama de alcance mundial. Quando Dilma propôs um dialogo com o Estado Islâmico, na ONU, percebi que o governo vive numa outra época. A nota formal de condenação do atentado parece o exercício de um dever burocrático.

A família veio para o país certo, apesar do governo. Quantas vezes com o Minc e Sirkis fizemos manifestações pela paz com judeus e árabes juntos no Saara? Isso não quer dizer que não exista intolerância religiosa no âmbito nacional. Nem tentativas de associar o Estado à religião, o que enfatizei em artigo sobre as eleições no Rio. Olhando para trás, no momento de barbárie, vejo como a ideia da liberdade individual, livre de doutrinas políticas ou religiosas, é uma trincheira a se defender com todos os riscos. Embora os riscos não sejam tão altos aqui nos trópicos.

Fonte: Blog do Gabeira, artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 18/01/2014

sábado, 24 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: Ocidentalismo

Ocidentalismo
Demétrio Magnoli

Após os atentados em Paris, os ocidentalistas limparam a cena do crime, apagando as digitais do terror jihadista

Edward Said definiu o "orientalismo" como o empreendimento de construção de um Oriente (árabe-muçulmano) imaginário por intelectuais ocidentais. O Oriente dos orientalistas, originalmente exótico e indecifrável, converte-se ao longo do tempo na fonte do irracionalismo e do perigo. Hoje, ironicamente, o "orientalismo" ganha uma imagem espelhada no "ocidentalismo", que também é obra de intelectuais ocidentais. O Ocidente imaginário que eles descrevem configurou-se com o imperialismo e evoluiu na forma de uma máquina implacável de exploração econômica, opressão social e exclusão etno-religiosa. Esse Ocidente maligno, explicam-nos, é responsável por toda a violência do mundo, inclusive pelo terror jihadista.

Os ocidentalistas negam a existência de uma história não-ocidental. Na hora dos atentados do 11 de setembro de 2001, espalharam a fábula de que a Al Qaeda foi parida na maternidade da CIA. Diante dos atentados em Paris, limparam a cena do crime, apagando as digitais das organizações jihadistas. Os nomes da Al Qaeda no Iêmen e do Estado Islâmico não aparecem nas suas análises das carnificinas, atribuídas a pobres diabos oprimidos pelo Ocidente: "alguns radicais" (Frei Betto) ou meros "lobos solitários" (Arlene Clemesha) que não passam de "maconheiros cabeludos" (Tariq Ali).

Os ocidentalistas organizam sua narrativa em torno da verossimilhança e do silogismo, investindo na carência de informação histórica da opinião pública. Nas versões que difundem, a culpa pelos atentados recai sobre a guerra suja de George W. Bush (Ali), mesmo se a jihad começou antes dela, ou sobre o colonialismo francês na Argélia (Clemesha), mesmo se os jihadistas qualificam os nacionalistas argelinos como infiéis e blasfemos. A regra de ouro é descartar todos os fatos que não cabem no molde do "ocidentalismo". Uma "moral dos fins", típica de ideólogos, justifica a manipulação, a distorção e a pura mentira, que desempenham a função de "meios" incontornáveis.

Os ocidentalistas são cultores do relativismo moral: defendem o princípio "ocidental" da liberdade de expressão para si mesmos, mas juntam suas vozes às dos fundamentalistas religiosos para acusar o Ocidente de libertinagem. No Corão, inexiste a proibição da figuração de Maomé. Amparado apenas no cânone islâmico que proíbe o culto a seres humanos, o veto não passa de uma interpretação abusiva de elites político-religiosas consagradas ao controle social. Contudo, segundo os ocidentalistas, o "Charlie Hebdo" estava "provocando os muçulmanos com blasfêmias ao profeta" (Ali), numa "atitude muito ofensiva" (Clemesha). O atentado jihadista deve, portanto, ser entendido como "uma resposta a algo que ofendia milhares de fiéis muçulmanos" (Frei Betto). Na versão deles, os terroristas fizeram justiça, reagindo à inação dos governos ocidentais acumpliciados com os detratores do Islã.

Os ocidentalistas não se preocupam com a consistência argumentativa. Eles dizem que os terroristas alvejaram o "Charlie Hebdo" como reação às charges do profeta, mas calam sobre o ato de terror complementar, no mercado kosher. Depois dos cartunistas, os jihadistas foram atrás dos judeus, comprovando que não lhes interessa o que você faz, mas o que você é. Entretanto, o "ocidentalismo" nunca distingue motivos de pretextos, inspirando-se nos editoriais de jornais governistas controlados por Estados autoritários para persistir nas invectivas contra os cartunistas.

Os ocidentalistas são parasitas intelectuais das correntes minoritárias de intolerância, xenofobia e islamofobia do Ocidente. O primeiro-ministro Manuel Valls declarou que "a França está em guerra contra o terrorismo e o jihadismo, não contra o Islã e os muçulmanos". Angela Merkel disse que "o Islã é parte da Alemanha". A sorte do "ocidentalismo" é que existem Marine Le Pen e o Pegida.

Fonte: Folha de São Paulo - 17/01/2015

Sobre o terror islâmico: O papa boxeador e as liberdades gêmeas

O papa boxeador e as liberdades gêmeas

Carlos Graieb

Numa conversa com jornalistas nesta quinta-feira, durante uma viagem do Sri Lanka às Filipinas, o papa Francisco foi indagado sobre o massacre no jornal francês Charlie Hebdo. A primeira parte da resposta foi a esperada: ele repudiou o uso da religião para justificar atrocidades. A segunda parte fugiu um tanto do script. Francisco apontou um auxiliar e disse que, se ouvisse dele um palavrão contra sua mãe, seria natural que lhe aplicasse um murro. “Dou esse exemplo para mostrar que na liberdade de expressão há limites”, afirmou Francisco. Ele ainda lamentou que existam “provocadores” – gente que fala mal das religiões.

Pouco mais tarde, o Vaticano julgou prudente esclarecer que as declarações do papa boxeador foram feitas em tom “coloquial e amigável” e não pretendiam de maneira nenhuma incitar a violência. Seria mesmo absurdo comparar a pilhéria infeliz do papa com a fala dos clérigos radicais que dizem aos seus seguidores, com sangue nos olhos, que é um dever pegar em armas e aniquilar os infiéis. Francisco não chamou à Guerra Santa nem pregou a intolerância. Mas é fato que, ao dizer o que disse, ele se juntou ao coro dos que “compreendem” que alguém reaja com a força física quando zombam de uma crença religiosa. 

Há todo tipo de voz nesse coro. Há líderes religiosos, intelectuais e gente comum na internet. Há os tolos, os covardes, os de má fé. Falemos apenas dos "homens de boa vontade": aqueles que sinceramente acreditam que a sensibilidade dos religiosos merece uma proteção especial nos debates públicos — que ela deve ser posta a salvo dos espíritos sarcásticos ou debochados.

Os cartunistas do Charlie Hebdo pagaram com a vida por discordar dessa ideia. Mas eles não discordavam por mero espírito de porco. Em 2012, em meio a um intenso debate que se desencadeou na França depois que outra série de charges do jornal fez chacota do islamismo e do profeta Maomé, Stéphanne Charbonnie – Charb, editor-chefe do semanário e um dos assassinados no ataque à publicação – perguntou: “Quando as religiões invadem o espaço da política, elas não se tornam alvo para críticas e charges, como acontece com os políticos?”

A pergunta pressupõe toda uma herança: a herança da separação entre Igreja e Estado, um dos esteios da cultura democrática que floresceu nos últimos duzentos anos.

É curiosa a formulação de Charb. Ele não aponta o dedo contra a religião propriamente dita, mas contra a religião “que invade o espaço da política”. Esse tipo de religião é aquele que nega que alguma esfera da vida humana possa existir à margem dos preceitos de um livro sagrado (ou, com mais frequência, daquilo que algum fanático alega ser a pregação de um livro sagrado). É a religião que mata para impedir a pesquisa científica, para eliminar os não-convertidos ou para construir um novo califado no século XXI.

Na formulação de Charb, a religião como questão da alma continua inteiramente preservada. E aqui é importante lembrar que a doutrina da separação entre Igreja e Estado não surgiu na Europa do século XVIII como inimiga da religião, mas, ao contrário, para proteger minorias de serem obrigadas a adotar uma fé contra a sua vontade. No mesmo século, ao promulgar sua constituição e sua Carta de Direitos, os Estados Unidos deram um passo além: lá, pela primeira vez, o direito de rezar para quem se quisesse, da forma como se quisesse, nasceu de um acordo entre os cidadãos, e não da outorga de um rei "benévolo”. 

O mundo moderno respeita e protege a fé porque inscreve nas constituições as liberdades de religião e de culto. Mas há uma contrapartida: a política tem de ser protegida de qualquer imposição da crença, seja ela uma crença específica ou o "espírito religioso” tomado de forma genérica. Isso não significa que argumentos de inspiração religiosa não possam ser usados no debate público. Significa apenas que eles estão sujeitos ao mesmo escrutínio, à mesma crítica e à mesma eventual erosão pelo humor que qualquer outro raciocínio derivado de uma doutrina política ou de uma “religião secular” (era assim que o intelectual francês Raymond Aron se referia às ideologias). Para garantir que seja dessa maneira, a liberdade de expressão também está inscrita nas constituições. São duas liberdades gêmeas, como fica evidente na primeira emenda à constituição americana — onde se estabelece um pacto feliz entre o espírito das Luzes e a Fé. 

Sociedades democráticas e pluralistas têm uma arquitetura engenhosa, mas delicada. Quem aceita que uma liberdade seja cerceada, logo pode se ver sem todas elas. As ditaduras de esquerda do século XX amordaçaram seus cidadãos e também lhes impuseram o ateísmo. Fascistas do Corão como os irmãos Kouachi, que invadiram a redação do Charlie Hebdo com seus rifles Kalashnikov e mataram doze pessoas, não são muito diferentes. Dizer que eles eram inimigos da liberdade de expressão é um pedaço da verdade. O mundo onde os irmãos Kouachi gostariam de viver só tem espaço para o comando autoritário da versão radical do islamismo que os seduzia. Eles eram também, e antes de mais nada, inimigos da liberdade de religião. Os homens de boa vontade que julgam correto silenciar os irreverentes e os debochados para não ferir a suscetibilidade dos crentes deveriam pensar sobre isso.
Fonte: Veja, 16/01/2015

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Sobre o terrorismo islâmico: Se tentasse virar Sonia num país islâmico o cartunista indulgente com assassinos não chegaria ao fim da primeira maquiagem


Se tentasse virar Sonia num país islâmico o cartunista indulgente com assassinos não chegaria ao fim da primeira maquiagem

por Augusto Nunes

O universitário Laerte Coutinho, com quem convivi por dois anos na Escola de Comunicações e Artes da USP, já refletia no traço e no conteúdo a influência do cartunista Georges Wolinski, uma das vítimas do ataque terrorista à redação do Charlie Hebdo. Discípulo aplicado de um mestre do humor anárquico, era impiedosamente irônico com qualquer tema ou personagem colocados na mira do seu lápis. A escolha do alvo passava ao largo de opções políticas, ideológicas ou religiosas. Tudo e todos podiam virar piada.

Nos anos seguintes, os charges, quadrinhos e cartuns que o transformariam em celebridade ficaram mais refinados e inventivos. Mas o profissional famoso foi essencialmente uma continuação do amador que admirava Wolinski até que, 2004, o cartunista que debochava da tribo dos engajados se apaixonou pela causa dos transgêneros. Passou a usar trajes femininos, concedeu-se o direito de acesso ao banheiro das mulheres e acabou virando “Sônia”. Assim começou a agonia do Laerte que conheci. A morte foi consumada pela reação de Sônia ao espetáculo do horror protagonizado em Paris por fundamentalistas islâmicos.

A perplexidade provocada pela execução do octogenário Wolinski talvez tivesse ressuscitado o cartunista que disparava charges em todas as direções se o discurso de adeus não fosse interrompido por Sônia antes que a temperatura chegasse ao ponto de combustão. “O ruim é que tudo isso vai fortalecer a direita”, advertiu a voz suave. No mundo binário em que vive a estranha entidade, só existem esquerda e direita. Se os franceses alarmados com o crescimento da comunidade islâmica são de direita, deve-se deduzir que é de esquerda, como Sônia, gente que metralha quem ousa ironizar figuras sagradas e morre acreditando que vai acordar num céu atulhado de virgens.

Nesta terça-feira, enquanto milhões de manifestantes se juntavam na portentosa ofensiva contra o primitivismo liberticida, a charge na segunda página da Folha confirmou que a mudança operada no autor foi muito além da troca de calças por saias. Assinada por um Laerte que já não há, a obra parida por Sonia se divide em dois quadrinhos. No primeiro, alguns vultos planejam numa sala da redação a edição seguinte, que se concentraria no monumento à boçalidade homicida. A dúvida sobre o que deveria ser destacado na capa é desfeita no segundo quadrinho, que reproduz a capa em que VEJA revelou que Lula e Dilma sabiam do que ocorria nas catacumbas da Petrobras.

O Laerte que não depilava o corpo enquadraria os carrascos. A ativista Sonia insinua que os colegas do Charlie Hebdo estariam vivos se fossem mais ajuizados. É sempre um perigo mexer com fanáticos que não sorriem. O desfecho sangrento seria evitado caso tivessem optado pela autocensura e proibido a entrada do profeta Maomé nas páginas do semanário. Em troca da sobrevivência, só perderiam a honra. O Laerte de antigamente estaria traduzindo charges ferozes a indignação com a tentativa de assassinato da liberdade de expressão ocorrida em Paris. Sônia ficou por aqui, concebendo o trucidamento simultâneo do jornalismo independente e da verdade.

A mão que rabiscou a vigarice obedece a uma cabeça em tumulto. Compassiva com matadores de humoristas, odeia a altivez da revista que, por cumprir sem medo a missão de informar o que efetivamente ocorreu, apressou o desmantelamento da quadrilha do Petrolão. Até terça-feira, o maior e mais abrangente esquema corrupto da história do Brasil havia merecido uma única e escassa charge da companheira Sônia. A primeira misturou a carnificina em Paris com a roubalheira na Petrobras para excluir Lula e Dilma do caso de polícia — e endereçar a quem noticia um crime a ironia que o extinto Laerte reservava aos criminosos.

Tudo somado, está claro que o cartunista já não sabe o que diz ou desenha. Laerte-Sônia ignora, por exemplo, como são as coisas no mundo islâmico. Nem desconfia que, se tentasse virar mulher por lá, não chegaria ao fim da primeira maquiagem.

Fonte: Veja, 15/01/2015

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Liberdade versus dogma: diversos artigos sobre o terrorismo islâmico

Como o terrorismo islâmico e suas barbáries não saem das manchetes, decidi compilar vários artigos, publicados desde o ataque à revista Charlie Hebdo, a respeito do tema. Os autores têm as mais diferentes perspectivas ideológicas: alguns liberais, outros social-democratas, outros de esquerda, outros ainda conservadores. 

Há algumas divergências, nos artigos, sobre se a violência é inerente ao Islamismo ou se é extrínseca à fé muçulmana, distorcida por radicais. Entretanto, todos têm em comum a negação da validade dos ataques cometidos na França, por extremistas muçulmanos, sob a desculpa esfarrapada de vingança contra os que "ofenderam" o profeta Maomé. Todos também fazem profissão de fé na liberdade de expressão, e vários criticam o apoio de esquerdistas ao terror e condenam a leniência com a qual o Ocidente vem tratando a islamização da Europa (que não, não é fantasia de conservador).

Apesar de um dos autores citados, Demétrio Magnoli, se posicionar contrário à expressão "terror islâmico", porque isso supostamente implicaria considerar todo o Islã como terrorista, eu optei por utilizá-lo porque é em nome do Islã que muculmanos extremistas vêm matando. Se os próprios assim se denominam, não vejo porque nós, ocidentais, é quem devemos contestá-los. A contestação cabe aos muçulmanos que rejeitam o que os extremistas fazem. 







Sobre o terror islâmico: O sagrado direito de blasfemar

O sagrado direito de blasfemar 

por José Nêumanne

As multidões, calculadas em quase 4 milhões de pessoas, que foram às ruas na França protestar contra o terrorismo fundamentalista islâmico, que fuzilou toda a redação do jornal satírico Charlie Hebdo, trazem a lume neste momento duas questões de alta relevância histórica para estancar o banho de sangue por ele causado.

É lamentável constatar que a mais de 13 anos da demolição das torres gêmeas em Nova York a civilização ocidental ainda não consegue lidar de forma competente e tranquilizadora contra os arroubos selvagens de grupos marginais de brutalidade acima de quaisquer limites. E com enorme capacidade de seduzir prosélitos não apenas em territórios do Islã, mas também em sociedades livres e prósperas. Os celerados que invadiram a redação e executaram quem nela estava eram cidadãos franceses aptos a produzir e compartilhar os bens de uma sociedade próspera e livre. Só que optaram por exterminar quem não comungava com eles uma causa exógena de fanáticos de uma crença de pessoas menos favorecidas em lugares remotos. Sua ascendência africana não altera o inusitado da opção sobre a qual urge refletir e debater antes de enfrentar.

Mesmo alertado pela ocorrência do atentado mais espetacular de todos os tempos, o de Nova York em 2001, o aparato policial armado pelos Estados Democráticos de Direito laicos e liberais ameaçados pela fé cega mostrou-se incapaz e insuficiente para deter outros mais corriqueiros, mas não menos surpreendentes, como o de Paris. A redação já fora atingida antes pelo mesmo tipo de fanatismo e sob idêntica alegação: a blasfêmia. No entanto, a dupla de facínoras, pesadamente armados, não enfrentou a menor resistência para entrar no prédio e, mesmo errando de andar, chegar ao objetivo, render uma funcionária, invadir o recinto de trabalho e promover a carnificina. Os assassinos encontraram a mesma facilidade para deixar o local, matar um patrulheiro na rua à queima-roupa e sair em fuga pela cidade indefesa.

A incompetência do Estado francês foi confirmada ao longo de toda a tentativa de fuga dos assassinos e reconhecida publicamente logo depois da execução dos terroristas. Por mais absurdo que pareça ao instinto de vingança que assoma a qualquer um a clamar pela morte imediata dos criminosos, a própria execução dos fanáticos, cercados numa gráfica nos arredores de Paris, confirma a inaptidão da força policial que os perseguiu. Capturá-los vivos era essencial por todos os motivos lógicos. O mais corriqueiro deles seria obter da dupla encurralada todas as informações possíveis sobre a organização a que pertenciam e a rede de sobreviventes encarregados de executar as ordens e os objetivos dela emanados.

Chega a ser patético apelar para raciocínios mirabolantes e hipóteses nem sempre plausíveis para reconstruir os passos que levaram os irmãos Kouachi ao local e ao êxito de seu intento absurdo. Tudo seria mais simples, embora não necessariamente fácil, se eles tivessem sido presos e processados na velha e boa forma da lei. Pois assim o quebra-cabeças poderia ser montado para esclarecer o ato criminoso ao longo do processo e tornar viável o planejamento da caça a outros eventuais membros das hordas vingadoras do profeta Maomé no Velho Continente.

O atentado de Paris deixou claro que as medidas preventivas de segurança precisam ser aperfeiçoadas, mas não alterou o conceito fundamental de que só se protege a liberdade com mais liberdade. A execução dos fugitivos na gráfica pode até ter livrado o Estado francês do vexame da exibição de sua incompetência. Só que isso deveria ser tornado público para que os erros capitais cometidos pela segurança no caso não sejam repetidos doravante. Aliás, eles não resultam exclusivamente da ancestral leniência francesa. O Ocidente, incluindo os EUA, deveria repensar compreensão e ação no combate ao terrorismo.

A questão positiva resultante do massacre da redação foi a mobilização popular em defesa não apenas da liberdade de expressão, enlutada, mas fortalecida com o tiroteio ocorrido a poucos quarteirões da Bastilha, cuja queda foi o marco inicial da Revolução Francesa, no século 18. Mas também do direito à vida. Os quatro reféns de Amedy Coulibaly no mercado kosher foram capturados por acaso, como quase todas as vítimas de atentados do gênero, em geral aleatórios.

Não foi, então, a censura à liberdade de opinar ou mesmo de satirizar Maomé que inspirou o atentado ao Charlie Hebdo, mas a tentativa tirânica de impor uma crença a quem professa outros credos ou não crê. Mais do que a livre expressão, perto da Bastilha foi atacada a liberdade de viver da forma como cada cidadão quer, o que é seu direito sagrado. Assim como o é o de blasfemar. Foi a percepção desta agressão totalitária que despertou a indignação do cidadão que ocupou as ruas, desarmado. Este, contrariando preceitos politicamente corretos de que também lhe exigem obediência, assumiu a identidade da vítima (Charlie) pacificamente, sem promover desordens. A compreensão deste novo momento do convívio humano em sociedade foi de tal forma completa que os franceses, que tendem em sua maioria a desconfiar da polícia, aplaudiram os agentes da lei, cuja ação em todo esse episódio ficou patente como sendo de escudo para as balas dirigidas a esmo contra qualquer transeunte que passasse.

A "grande marcha", denominação que lembra a chegada ao poder de uma ditadura brutal, a do comunismo chinês, expressou sua fé contra qualquer totalitarismo. Isso foi entendido por François Hollande, tido como fraco, e por Angela Merkel, conhecida como forte. Obama e Dilma (representada pelo embaixador Bustani) não compareceram ao ato, mas não fizeram falta. Neste instante crucial para o gênero humano, a Europa revelou-se autossuficiente para resgatar a civilização dos riscos de barbárie Sem o Tio Sam nem o PT.

*José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor

Fonte: O Estado de São Paulo, 14 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: "A loucura é contagiosa"

"A loucura é contagiosa"

João Pereira Coutinho

Os terroristas franceses já devem estar com as suas 72 virgens no paraíso —e o leitor, no conforto do seu lar, sente que existe uma pergunta lógica, porém desconfortável, que ocupa espaço no seu crânio ecumênico. A saber: se o jornal satírico "Charlie Hebdo" nunca tivesse publicado cartuns ofensivos para a religião muçulmana, será que o massacre teria ocorrido?

Melhor ainda: por que motivo insistimos em "blasfemar" contra a fé dos radicais? Ganhamos alguma coisa com isso?

Para o leitor benemérito, se o Ocidente apagar o mundo islâmico dos seus radares, obedecendo caninamente aos preceitos da sharia, o mundo islâmico também apagará o Ocidente das suas armas. A Deus o que é de Deus, a César o que é de César –e a Alá o que é de Alá. Cada um no seu canto. Em paz e sossego.

Existem várias formas de lidar com essas perguntas ingênuas. A mais óbvia seria lembrar que o terrorismo islamita não precisa de nenhum pretexto para atacar um "modo de vida" que abomina no seu todo. Se não fossem os cartuns, seria outra coisa qualquer: aos olhos do fanatismo, os "infiéis" não pisam o risco apenas quando usam o lápis.

E, claro, silenciar a liberdade de expressão seria um suicídio civilizacional –e uma vitória para os assassinos.

Mas existe outra forma de responder às inquietações do leitor —e a história do século 20 continua sendo a melhor escola.

Daqui a uns dias, passarão 50 anos desde a morte de Winston Churchill. E um livro recente tem ocupado os meus dias: "The Literary Churchill", de Jonathan Rose (Yale University Press, US$ 25, 528 págs.), uma biografia do velho Winston lançada em 2014 que procura explicar o seu percurso político por meio dos textos que ele leu, escreveu e, naturalmente, representou como grande ator que era.

Um capítulo da obra, porém, merece atenção especial à luz do terrorismo na França: na década de 1930, com a memória da Primeira Guerra Mundial ainda fresca, a elite política (e conservadora) britânica tentava desesperadamente não embarcar em novo conflito contra a Alemanha.

E Lord Halifax, secretário de Relações Exteriores, era apenas um dos rostos dos "appeasers" (pacifistas, em português) que acreditou na possibilidade de manter a fera na sua jaula.

Halifax conheceu pessoalmente Hitler em 1937 e notou que o Führer nutria um ódio insano por dois temas em especial: o comunismo soviético (lógico) e, atenção leitor, a liberdade de expressão da imprensa britânica (ilógico?).

Para Hitler, e para o ministro da Propaganda alemã Goebbels, a imprensa britânica era o grande obstáculo para a paz. Por quê?

Ora, porque bastava ler a prosa antigermânica do "News Chronicle" ou do "Manchester Guardian" para concluir que os jornalistas britânicos não respeitavam a figura sagrada de Hitler, o "profeta" da raça ariana.

E quem diz "ler", diz "ver": no "Daily Herald" ou no "Evening Standard", Hitler não apenas era severamente criticado (por Churchill, por exemplo). Ele era igualmente ridicularizado nos cartuns de Will Dyson ou David Low (os Wolinskis da época).

Halifax, que nunca se notabilizou pela coragem, regressou à Inglaterra com a mesma ideia que o leitor ecumênico tem na cabeça: se ao menos a imprensa se comportasse"¦ Quem sabe? Talvez Hitler ficasse sossegadamente em Berlim, desenhando nas horas livres e constituindo família com Eva Braun.

Aliás, Halifax não ficou nas ideias: ele convenceu mesmo David Low a moderar os seus desenhos, coisa que o artista fez, mas só até Hitler invadir a Áustria em 1938.

Depois disso, regressaram os cartuns antinazistas (que os "appeasers" continuavam a considerar "gratuitos" e de "mau gosto").

Curioso: Hitler devorava a Europa, pedaço a pedaço, em busca do seu "espaço vital". Mas as avestruzes britânicas acreditavam que tudo seria diferente se o lunático Adolfo tivesse sido tratado com "respeito" pelos jornais.

Churchill nunca mostrou respeito. E, quando finalmente assumiu o governo, em 1940, tratou Hitler com a dureza de sempre. A besta nazista foi derrotada em 1945.

Existe uma moral na história dessa história?

Existe, leitor ecumênico: não somos nós os culpados pela loucura dos outros. Imaginar o contrário, por medo ou ignorância, é simplesmente partilhar a loucura em que eles vivem.

Fonte: Folha de São Paulo, 13 de janeiro de 2014

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: Os esquerdopatas

Os esquerdopatas

Denis Lerrer Rosenfield 

O inominável, mais uma vez, mostrou o seu rosto. A frieza dos atos, a meticulosidade em sua preparação e o símbolo a ser atingido estampam a maldade extrema enquanto característica do terror. No caso do assassinato de cartunistas e jornalistas do Charlie Hebdo e de policiais, do terror islâmico.

Os terroristas mostraram, em sua ação, extremo profissionalismo. Não são lobos solitários nem indivíduos que agem de forma amadora, levados por uma emoção intensa. Foram treinados com tal objetivo e veicularam em seu ato o islamismo radical que os alimenta. Um policial ferido foi friamente assassinado no solo, quando os terroristas já se retiravam. Cartunistas chamados pelo nome eram alvos previamente determinados e deveriam ser exterminados.

Visaram tudo o que o terror não pode admitir: a liberdade de imprensa, em sua forma particularmente irônica e satírica, a liberdade de expressão e o que caracteriza de modo geral uma sociedade democrática e livre. Ou seja, procuraram atingir tudo o que consideramos como a civilização, a humanidade no que produziu de mais nobre no que diz respeito às suas ideias e seus princípios. Nada foi deixado ao acaso: jornalistas libertários e, dentre eles, o mais renomado, Wolinski, um judeu. Certamente isto não escapou aos terroristas islâmicos.

Contudo nada é propriamente novo. Igual comoção não se produziu quando cristãos foram crucificados no Iraque pelo Estado Islâmico. Houve uma estranha condescendência, como se essas imagens fossem, de certa maneira, menos impactantes. É como se estivesse sendo dito que essas comunidades cristãs não deveriam estar onde estão, apesar de sua origem remontar a muitos séculos, algumas descendentes dos primeiros cristãos. O cristianismo, para alguns, seria uma forma de cultura ocidental que não deveria fazer parte deste mundo, como se, por definição, ele devesse ser de natureza muçulmana radical.

Nada muito diferente do que acontece com Hamas em sua luta pela destruição do Estado de Israel, que terminou contando com a simpatia de boa parte de jornalistas e intelectuais. Alguns mais extremistas chegaram a pregar, em artigos, seu apagamento do mapa. Augusto Bebel, social-democrata alemão do final do século 19 e início do século 20, dizia que "o antissemitismo era o socialismo dos idiotas". Poderíamos parafraseá-lo e dizer que "o antissionismo é o socialismo dos imbecis".

O Hamas nada mais é que uma corrente do islamismo radical nascida da Irmandade Muçulmana. São duas faces do mesmo movimento, apregoando os mesmos "valores e princípios", como se valores e princípios fossem tudo o que procura justificar o aniquilamento dos princípios mesmos, universais, da civilização ocidental. Qualquer concessão ao multiculturalismo nada mais é, aqui, que uma adesão politicamente correta ao terror.

O caso do Egito é particularmente significativo, mostrando precisamente as contradições de uma esquerda que termina optando pela submissão. Os militares egípcios, de confissão sunita, compreenderam muito bem a natureza do islamismo radical e se opuseram resolutamente a ele. Aliás, no contexto atual, a liderança religiosa sunita desse país condenou em termos veementes o atentado terrorista ao jornal francês.

Ora, esses militares deram um golpe na Irmandade Muçulmana, que tinha conquistado o poder pela via eleitoral para ali se perpetuar. Esse movimento islamita utilizou a tática bolivariana de subverter uma instituição democrática por meios eleitorais. Note-se que, nesse período, armaram o Hamas e deram-lhe cobertura para atacar Israel com meios militares mais poderosos, pela importação de armamentos e de fábricas próprias de mísseis e foguetes.

Os militares egípcios salvaram, na verdade, esse país de se tornar um Estado terrorista. O mais surpreendente é que foram condenados pela esquerda por serem não democráticos, embora se tivessem legitimado posteriormente em nova eleição. Chama a atenção o fato de que os que se opõem diretamente ao terror sejam condenados, como se essa forma de islamismo radical tivesse o direito de existir, entendido por eles como o direito de exterminar os diferentes.

A comunidade yazidi, no Iraque, sofreu destino semelhante, sendo perseguida e assassinada pelos membros do Estado Islâmico. A violência foi também extrema, não poupando jovens e mulheres, estupradas, escravizadas e prostituídas. Sua condição é igualmente inominável, porém, de certa maneira, parece chocar-nos menos por se situar numa terra longínqua, enquanto a França nos é bem próxima.

Trata-se de uma trajetória da maldade que encontra agora, na figura de jornalistas contestatários, uma espécie de culminação, a do terror que, nesta sua forma, se torna mais assustadora. Acontece que esse desfecho contou, em seus momentos anteriores, com a simpatia de vários setores à esquerda do jornalismo e da intelectualidade. Muitos dos seus atos, com essas suas outras faces, eram vistos como modos de luta contra os EUA, o "imperialismo", o capitalismo e outras bobagens do mesmo quilate. Outros ainda afirmavam a necessidade do multiculturalismo, do direito de diferentes culturas (aliás, direito ao terror, propriamente falando!).

Outros ainda procuram explicar o terror como uma suposta retroalimentação entre ele e a islamofobia, ou "justificar" tais tipos de ação como "respostas" à profanação da imagem de Maomé, como se os terroristas tivessem o direito de impor suas crenças aos países ocidentais, eliminando seus valores. Claro que sempre há uma frase ou pequeno parágrafo final condenando o ato, como se assim o jornalista ou "analista" pudesse ainda salvar a sua face, não se mostrando francamente adepto do terror, o que não cairia bem no contexto atual de condenação mundial desse ato.

São, na verdade, esquerdopatas, ou seja, dizendo a mesma coisa de outra maneira, pensam com as patas.

*Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia na UFRGS 

Fonte:  O Estado de São Paulo, 12/01/15, denisrosenfield@terra.com.br

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: Viva a falta de respeito, humor não é ofensivo

Viva a falta de respeito, humor não é ofensivo

por Gregorio Duvidier

Colunista da Folha defende cartunistas do jornal francês "Charlie Hebdo", que "morreram pela nossa liberdade"

Muitos dizem que charges eram islamofóbicas, porém embate não era entre franceses e não franceses, mas entre humor e fanatismo

Um dos problemas de morrer é esse: vão falar muita asneira a seu respeito. E você já nem pode se defender. Não bastou serem fuzilados, os cartunistas do "Charlie Hebdo" foram vítimas de um massacre póstumo.

Pessoas de todas as áreas de atuação lamentaram a tragédia, MAS (não entendo como alguém, nesse caso, consegue colocar um "MAS") lembraram que o humor que eles faziam era altamente "ofensivo".

Poucas coisas irritam mais do que a vagueza desse termo "ofensivo" quando usado intransitivamente. Ofensivo a quem? A mim, definitivamente, não era. "Eles não deviam ter brincado com o sagrado", alegam alguns. MAS (aqui sim cabe um "mas") o que define o humor é exatamente isso: a brincadeira com o sagrado.

Discordo de quem pede respeito pelo sagrado. Para começar, acho que a palavra respeito é uma palavra que não cabe. Uma vez, vi o Zé Celso pedir a um jovem ator que não o tratasse por "o senhor", mas por "você". O ator disse que não conseguia porque tinha muito respeito por ele. E ele respondeu: "Não me interessa o respeito. O que me interessa é a adoração.".

O espaço da arte não é o espaço do respeito, mas o espaço da subversão, ou então da reverência, do culto. Do respeito, nunca.

No mais, tudo é sagrado para alguém no mundo. A maconha, a vaca, a santa de madeira, o Daime, Jesus e Maomé: tudo merece a mesma quantidade de respeito, e de falta de respeito.

Esperava essa reação raivosa dos fanáticos religiosos. No Brasil, o fundamentalista prefere os meios oficiais: não usa metralhadoras, mas tem bancada no Congresso e milhões no exterior.

Muitos (dentre os quais o pastor Marco Feliciano) já externaram o desejo de que o Porta dos Fundos "brincasse com islamismo pra ver o que é bom pra tosse". Até nisso temos complexo de vira-lata: nosso fundamentalismo tem inveja do deles.

O que nunca imaginei era que a mesma reação de "fizeram por merecer" partiria da própria esquerda. Muitos condenaram as charges como sendo islamofóbicas e lembraram que os imigrantes islâmicos já sofrem preconceito demais na França.

Mas esses imigrantes não eram os alvos, definitivamente, do humor do cartunistas assassinados. O embate não era entre franceses e não franceses, mas entre humor e fanatismo.

O traço infantil talvez confunda o leitor desavisado, mas é bom lembrar que as charges do "Charlie Hebdo" não tinham nada de ingênuas: eram facas afiadas na goela do ódio.

As coletâneas de capas do semanário sobre islamismo fazem parecer que esse era o grande tema do jornal. Não era. O jornal atirava para todos os lados, mas o alvo preferido era justamente a extrema direita de Le Pen --esse sim, islamofóbico.

Os chargistas que, mesmo ameaçados, não baixaram o tom, não devem ser tratados como pivetes malcriados que "fizeram por merecer", mas como artistas brilhantes que morreram pela nossa liberdade. Nosso dever é continuar lutando por ela, sem fazer concessões nem perder aquele ingrediente essencial: a falta de respeito pelo ódio.

A questão por trás disso tudo é a mesma de sempre: existe limite para o humor? A questão é complexa, mas a melhor resposta parece ser a seguinte: o limite está no objeto do riso. Rir de quem está por baixo é covarde, rir de quem está por cima é corajoso. Deve-se rir do opressor, e não do oprimido.

O problema é que essa resposta gera novas perguntas. Quem é o oprimido? Quem é o opressor? Muitas vezes, essa distinção não é clara.

Uma dica: quando surgir a dúvida sobre quem é o oprimido e quem é opressor, em geral, o indivíduo que foi fuzilado é o oprimido.

Fonte: Folha de São Paulo, 11 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: Raqqa, aqui

Raqqa, aqui

Por Demétrio Magnoli
Enquanto, na França, dezenas de milhares saíam às ruas para dizer "Eu sou Charlie", professores universitários brasileiros saíam de suas tocas para celebrar o terror. Não começou agora: é uma reedição das sentenças asquerosas pronunciadas na esteira do 11 de setembro de 2001. São sinais notáveis da contaminação tóxica de nossa vida intelectual e, especificamente, da célere conversão de departamentos universitários em latas de lixo do pensamento.

A mensagem dos franceses foi um tributo à vida e à civilização. "Eu sou Charlie" não significa que concordo com qualquer uma das sátiras do Charlie Hebdo. Significa que concordo com a premissa nuclear das sociedades abertas: a liberdade de expressão é, sempre, a liberdade daquele com quem não concordo. Isso, porém, nunca entrará na cabeça de nossos mensageiros da morte.

Seu discurso padrão começa com uma condenação ritual do ato terrorista: "É claro que não estou defendendo os ataques", esclareceu de antemão uma dessas tristes figuras, antes de entregar-se à defesa, na forma previsível da condenação das vítimas "justiçadas". "Não se deve fazer humor com o outro", sentenciou pateticamente Arlene Clemesha, que ostenta o título de professora de História Árabe na USP, para concluir com uma adesão irrestrita à lógica do terror jihadista. É preciso, disse, "tentar entender" o significado do ataque: "um atentado contra um jornal que publicou charges retratando o profeta Maomé, coisa que é considerada muito ofensiva para qualquer muçulmano".

Clemesha é só uma, numa pequena multidão acadêmica consagrada à delinquência intelectual. No mesmo dia trágico, Williams Gonçalves, professor de Relações Internacionais na Uerj, esqueceu-se do cínico aceno prévio para expor logo sua aguda visão sobre o "controle social da mídia" e, de passagem, candidatar-se a porta-voz oficial do Estado Islâmico: "Quem faz uma provocação dessas", explicou, referindo-se aos cartunistas assassinados, "não poderia esperar coisa muito diferente". O curioso, nas Clemeshas e nos Gonçalves, é que eles rezam pela mesma cartilha que Marine Le Pen, apenas com sinal invertido. O nome dessa cartilha é "choque de civilizações".

Na onda de islamofobia que varre a França, surfam dois lançamentos recentes. O livro "Le suicide français", do jornalista ultraconservador Éric Zemmour, alerta contra a destruição da cultura francesa por vagas sucessivas de imigração muçulmana. O romance "Soumission", de Michel Houellebecq, imagina a França governada por um partido islâmico no ano agourento de 2022. Segundo a gramática do "choque de civilizações", o Islã não cabe na França: um muçulmano só pode ser um francês se, antes, renunciar à sua fé. Os nossos Gonçalves e Clemeshas estão de acordo com isso –mas preferem que, para acolher os muçulmanos, a França renuncie a suas leis e a seus valores, entre os quais a laicidade do Estado. E, no entanto, apesar de Zemmour, Houellebecq, Clemesha, Gonçalves e Le Pen, milhares de muçulmanos franceses exibiram nas ruas os cartazes com a inscrição "Eu sou Charlie"...

Karl Marx escreveu cartas elogiosas a Abraham Lincoln. Leon Trostsky contou com a colaboração inestimável do filósofo liberal John Dewey para demolir as falsificações dos Processos de Moscou. Entre um evento e outro, o socialista August Bebel qualificou o antissemitismo como "o socialismo dos idiotas". Em outros lugares e outros tempos, o pensamento de esquerda confundiu-se com o cosmopolitismo e produziu as mais comoventes defesas das liberdades civis. No Brasil de hoje, com honoráveis exceções, reduziu-se a um pátio fétido habitado por "black blocs" iletrados, mas fanaticamente antiamericanos e antissemitas.

"Não se deve fazer humor com o outro", está escrito na lápide definitiva que cobre o túmulo do humor. Raqqa, a sede do califado, é aqui. "Eu sou Charlie".

Fonte: Folha de São Paulo, 10/01/2015

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Sobre o terror islâmico: A primeira vítima é o humor

A primeira vítima é o humor

por Eugênio Bucci

O atentado contra a redação da revista Charlie Hebdo, ontem, em Paris, deixou para trás 12 cadáveres, 10 feridos e uma perplexidade do tamanho do mundo. O alvo dos terroristas foi a piada, o deboche. A vítima foi o humor. Dez dos 12 mortos trabalhavam na publicação, entre elas o diretor, Stephane Charbonier, que também era chargista (os outros dois mortos eram policiais, que não conseguiram deter os assassinos em fuga). A Charlie Hebdo fazia humor sobre o Islã e vinha sofrendo ameaças e agressões. Ontem foi finalmente dizimada. Testemunhas contaram que os atiradores teriam dito que "vingavam o Profeta" enquanto disparavam contra os cartunistas. Movidos por uma verdade absoluta qualquer, eles pretendiam silenciar e exterminar a ironia.

O sinal que mora dentro disso vem carregado de trevas. Muitos apontaram aí um crime contra a liberdade de imprensa e, portanto, um atentado contra os direitos humanos (embora muitos se esqueçam, a liberdade, que aparece no primeiro artigo da Declaração dos Direitos Humanos de 1948, é parte integrante e inseparável de qualquer entendimento que se possa ter das garantias fundamentais que cimentam a ideia que acalentamos de civilização). Mas é pior do que isso. Nessa tragédia concentrada, a vítima não é a imprensa em geral, não é a imprensa genérica. Estamos falando aqui da imprensa que faz rir, que falta com o respeito, que destroça a impostura de seriedade tão comum nos demagogos. Estamos falando de uma imprensa ainda mais arredia, que zomba da circunspecção dos circunstantes e rechaça a impostação e os salamaleques das autoridades, sejam elas religiosas, civis, militares ou simplesmente imbecis. Desta vez a vítima é a sátira. A vítima é a ironia.

Nada pode ser mais expressivo e mais aterrorizante. Matando a ironia, cortando-a pela raiz (e pelo pescoço), os autores da carnificina pretendiam matar o próprio espírito da modernidade. Se existe um traço distintivo da modernidade, é a ironia, essa sofisticação cética do espírito humano que passa pela recusa do argumento da autoridade - e pela ridicularização, mais ou menos ostensiva, da figura empolada da autoridade. A ironia duvida do poder porque sabe que o sujeito, em público e em privado, não governa todos os seus atos e todas as suas palavras. Enquanto uns batem continência e outros se ajoelham, a ironia ri. Não leva o ego tão a sério assim. Não dá crédito ao superego. Quando argumentam que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, a ironia gargalha: se inventou esse tal de homem, Deus só pode ser mesmo um pastel. O melhor da ironia é rir de si mesma. Ela se sabe vã, embora se saiba também onipresente (mais onipresente do que Deus). Sabe-se presente, ainda que de forma involuntária, em tudo o que se move e em tudo o que fica parado na paisagem social e nas profundezas do psiquismo de cada um. Sem ironia o que é moderno fenece. Não há mundo moderno sem o arejamento da ironia e, no fundo, é exatamente esse arejamento que nos pode vacinar contra as catedrais do fundamentalismo e da intolerância, as forças malignas que nos tracionam para o passado.

Quem disparou contra os desenhistas corrosivos da revista francesa alimenta, sim, a fantasia tanática de aniquilar a democracia, a liberdade, a modernidade e, principalmente, a nossa ideia profana e fugidia de felicidade. Quem quer que tenha cometido tamanha brutalidade quer castrar a imaginação e o prazer, nos semelhantes e em si mesmo.

Além de monstruoso em todas as suas faces, o ataque terrorista à revista Charlie Hebdo é também um alerta sobre o lugar da liberdade de imprensa em tempos em que a imprensa parece não ter lugar no mercado. Os jornalistas acostumaram-se a pensar que ser independente se resume a não depender econômica e politicamente do governo, do Estado, de um grupo particular de anunciantes, das igrejas e do lobby cada vez mais poderoso das ONGs aparentemente boazinhas. Bem sabemos que, no Brasil, muita gente não assimilou metade dessa lição elementar, mas, de todo modo, ela continua sendo boa e necessária. Só tem um detalhe: ela não é mais suficiente. As agressões à liberdade de imprensa não partem mais apenas de juízes desavisados que impõem censura prévia em sentenças mal fundamentadas ou de governantes maliciosos que cooptam veículos fragilizados com o dinheiro ilimitado da publicidade oficial. A violência contra o direito à informação e a liberdade de expressão já não vem somente da cobiça dos endinheirados ou da ganância dos donos do poder. Agora quem se lança contra o espírito livre da crítica são gigantescas estruturas paraestatais e abertamente criminosas. Para não irmos longe, em comunidades da Colômbia e do México são grupos paramilitares, a mando de traficantes ou de milícias, que assassinam profissionais de imprensa e impõem às redações o pior dos regimes de terror. Quanto à polícia e quanto à Justiça, estas, muitas vezes compradas, se limitam a ser morosas ou aéreas. É o seu modo de ser cúmplice.

Hoje, em suma, o Estado não é deletério apenas quando move ataques contra a imprensa livre. Ele é ainda mais deletério quando não sabe (ou não quer) defendê-la.

Em Paris, o presidente François Hollande acertou ao ir prontamente a público para liderar a indignação da sociedade contra o gesto inominável. Mas a reação ainda é tímida. Na França, como no Brasil, ainda são numerosos os políticos que não perceberam que não poderiam existir sem a imprensa que zomba deles. Mais, muito mais do que antes o Estado é chamado a defender não apenas o instituto da reportagem investigativa e das críticas mais ácidas, mas também a irreverência, a sátira e a caçoada. Se a democracia não despertar para esse compromisso, será sucedida por um mundo em que o riso, a ironia e o gozo transgressor serão proibidos. E a política também.

* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP
Fonte: O Estado de São Paulo, 08 de janeiro

Sobre o terror islâmico: El islam como problema

Maurício Rojas
El islam como problema

A comienzos de junio Tony Blair publicó un artículo a propósito del asesinato del soldado británico Lee Rigby en una calle del sur de Londres que causó gran revuelo. Su título era Un problema dentro del islam y en sus párrafos más destacados decía lo siguiente:
No hay un problema con el islam... Pero hay un problema dentro del islam –de parte de los adherentes a una ideología que es una rama dentro del islam–. Y esto tenemos que ponerlo sobre la mesa y ser honestos acerca de ello. Por supuesto que hay cristianos extremistas y también judíos, budistas e hinduistas que lo son, pero me temo que esta rama dentro del islam no sólo abarca a unos pocos extremistas. En su núcleo existe una concepción de la religión y de la relación entre religión y política, que no es compatible con las sociedades pluralistas, liberales y tolerantes.
Para muchos fue una declaración escandalosa, lo que simplemente indica el grado de incapacidad de hablar con franqueza a que se ha llegado en lo referente al islam. Al poco tiempo vino la crisis egipcia, confirmando una vez más que el islamismo, es decir, lo que Blair considera la rama problemática del islam, "no sólo abarca a unos pocos extremistas". Sin embargo, si bien para muchos la constatación de Blair parece osada la verdad es que elude lo más importante y problemático, a saber, que aquella "concepción de la religión y de la relación entre religión y política, que no es compatible con las sociedades pluralistas, liberales y tolerantes" es, en realidad, la esencia misma del credo instaurado por Mahoma.

Cabe recordar que la idea distintiva del islam es que su libro sagrado, el Corán, es la palabra eterna, exacta e inmutable de Dios que Mahoma, con la mediación del arcángel Gabriel, sólo se limitó a recitar (Corán, Qu’rān, significa "la recitación" y la ortodoxia plantea que el texto, ya en árabe clásico, existió en Dios desde siempre). Esto crea un obstáculo mayor para cualquier intento de interpretación alegórica, matización o reforma del mensaje coránico. Pero lo decisivo es que este mensaje inmutable, complementado por los hadices o hechos y dichos del Profeta, no se refiere exclusivamente a cuestiones espirituales o supraterrenales, sino que aspira a regir directamente el conjunto de la vida social y espiritual. Ésta es la raigambre "totalizante" del islam, ya que excluye la existencia de un orden secular separado o no regido por la religión. Pero aquí también radica su matriz predemocrática, ya que no reconoce la soberanía legislativa del pueblo sino sólo la divina. Por ello, cuando los Hermanos Musulmanes dicen "El Corán es nuestra Constitución", están, de hecho, diciendo una obviedad para todo musulmán que siga tomando en serio los pilares mismos de su fe.

Si hacemos una comparación con el cristianismo y su evolución hacia una aceptación de la modernidad secularizada vemos dos notables diferencias que harán una evolución semejante mucho más difícil en el caso del islam. Por una parte, el cristianismo no es fundacionalmente totalizante (si bien tendería a serlo al ser adoptado como religión de Estado) y por ello no se articula originalmente como una religión que pretenda regir los asuntos de este mundo. "Dad al César lo que es del César, y a Dios, lo que es de Dios" y "Mi Reino no es de este Mundo" son dos magníficas síntesis bíblicas de esta distancia respecto del orden social y político terrenal. Por otra parte, a diferencia de Mahoma, Cristo no fue ni pretendió ser un jefe político-militar ni tampoco el creador de un orden social determinado. En suma, mientras que el cristianismo nació para resistir al mundo o incluso apartarse de él, el islam nació para conquistarlo y gobernarlo, para ampliar contantemente la "Casa del Islam" (Dār al-Islām) hasta absorber completamente ese mundo exterior llamado la "Casa de la Guerra" (Dār al-Harb).

Así y todo, el camino del cristianismo hacia una aceptación plena de una sociedad abierta no fue fácil. Su retirada hacia la esfera privada y la pérdida de su monopolio ideológico fue un proceso largo y desgarrador. También lo fue aceptar la crítica de sus textos sagrados, la autonomía de la ciencia y, sobre todo, la libertad del individuo para elegir sus formas de vida y, finalmente, creer o no creer. Nada semejante ha ocurrido dentro del islam y por ello su enfrentamiento con la modernidad –que no surge como en el mundo cristiano de una evolución interior sino que irrumpe como una fuerza exterior– ha sido tan difícil y traumático, provocando finalmente una fuerte reacción defensiva que propone la reislamización plena de la sociedad y la vuelta a la pureza de los orígenes, encarnada por esa utopía arcaica que es la umma o comunidad de los creyentes instaurada por Mahoma.

Este es el sentido estrictamente reaccionario del fundamentalismo islámico, pero lo que hay que entender es que el mismo no se deriva de una interpretación atávica o delirante del mensaje original de Mahoma, sino que fluye de la esencia misma de ese mensaje. En ello reside la dificultad que hay que saber reconocer y enfrentar, no para satanizar al islam sino para entender a cabalidad tanto su encrucijada actual como la fuerza del islamismo en sus diversas variantes.

El futuro dirá si el islam va a seguir siendo una "religión del recuerdo", es decir, de la fidelidad a la tradición (sunna) y al pasado, o si será capaz de evolucionar hacia una religión del futuro. Los que deseamos que prevalezca esta última alternativa debemos empezar por reconocer que existe un problema no sólo dentro del islam sino con el islam.

Fonte: Libertad Digital, 07/01/2015

sábado, 17 de janeiro de 2015

Retrospectiva 2014: O Liberalismo, que nasceu à esquerda, precisa voltar às suas raízes.


Registro aqui parte do resgate, feito pelo colunista do site Mercado Popular, Rodrigo Viana, da história da doutrina liberal, que realmente nasceu à esquerda, embora hoje seja tida como de direita. Deixo link para o texto integral, intitulado Liberalismo, a primeira esquerda, ao fim do texto. 

Viana identifica o liberalismo à esquerda porque a ela se costuma atribuir, como filha do Iluminismo, o anseio por mudanças, a crença otimista na razão e na capacidade humanas de moldar o seu destino e construir uma vida social mais justa e próspera. Nesse sentido, o liberalismo comunga, em espírito ao menos, com o socialismo. Em oposição a ambos, estaria o conservadorismo, com seu pessimismo quanto a qualquer tipo de reforma ou inovação estrutural na sociedade que não esteja realmente firmado numa continuidade.

Concordo com o autor quanto à identificação do liberalismo como doutrina de esquerda por seu anseio de mudanças. Aliás, nem há como discordar com tal abordagem por tratar-se de fato histórico. Discordo, contudo, da tese de que só haveria, em política, ou esquerda ou direita, o que corresponderia aos temperamentos humanos ou otimista ou pessimista. Ele chega a afirmar que "Na filosofia política não tem espaço para centro. Ou é x ou y." Embora não tome essas dicotomia a ferro e fogo, Viana não consegue escapar do maniqueísmo que lhe é intrínseco.

De fato, entre os temperamentos otimista e pessimista existe o temperamento realista que corresponde ao centro político. Como na velha piada, enquanto o otimista celebra o fato do copo estar meio cheio e o pessimista lastima que esteja meio vazio, o realista examina o conteúdo do copo, constata que é potável e o toma. Vale lembrar que o liberalismo, com o advento de seu meio-irmão psicologicamente instável, o socialismo, foi empurrado para o centro do espectro político e de lá sequestrado pelos conservadores, de fato seus antônimos anímicos, daí a figurar hoje como de direita. Uma verdadeira heresia, na minha opinião.

Cabe portanto, resgatar sim as raízes de esquerda do liberalismo, mas para permitir-lhe ser uma alternativa de esquerda ao seu irmão socialismo, que perdeu a Razão, e ao conservadorismo medroso e pessimista que leva ao imobilismo. E não como forma de reatar laços com o socialismo devido à origem comum.

A influência dos movimento iluministas e contra-revolucionários

por Rodrigo Viana

É sabido que os pensamentos políticos que vieram a ser influenciados diretamente pelos movimentos iluministas (ou Era da Razão) podem ser descritos facilmente como “esquerdistas”. Isto é, pensamentos de caráter visionário e de natureza opositora à perspectiva pessimista, mais preocupado em mudanças reformadoras e/ ou inovadoras. Estes pensamentos deram novas formas de reflexão na relação entre o ser humano e a sociedade. Resultando em ideias, possibilidades e alternativas sobre o estado em que se encontra a sociedade. E o liberalismo não apenas se encaixa nessa perspectiva, como foi o primeiro pensamento político a inaugurar de fato o que vinha sendo produzido nos círculos iluministas.

Uma vez a filosofia liberal sendo obra destes movimentos, em maior parte dos que se seguiram nos séculos dezessete e dezoito e em menor no dezenove, é natural que o liberal defenda a ideia de que o ser humano possui os instrumentos necessários para guiar o seu próprio destino no alcance de uma vida social mais justa e próspera. A crença iluminista pela busca por um mundo melhor é também um importante componente muito presente no liberalismo. E o que responde esse questionamento senão premissas como o respeito ao indivíduo enquanto um ser único tendo fim em si mesmo; direitos inalienáveis sobre a vida, liberdade e propriedade; igualdade de autoridade; poder político limitado; e sociedade tolerante?

Ora, existe um aspecto ativo dentro de qualquer pensamento enraizado nos movimentos iluministas. Esse aspecto é o impulso que motiva o liberal a não aceitar o mundo da forma como se encontra. Ele deseja a mudança e isso o motiva a buscar o que pretende. E isso independe da vertente que o liberal se apoia, seja ela no liberalismo clássico de Robert Nozick e Ludwig von Mises, no liberalismo social de John M. Keynes e John Rawls ou no liberalismo radical de Murray Rothbard e David Friedman. O liberal deseja aprimorar, transformar e tornar mais justo as relações humanas.

Isso é notório ao comparar com uma outra importante filosofia política também de origem iluminista: o socialismo. Mas antes abro um parêntese: do mesmo modo que falo do liberalismo em uma maneira ampla e sem levar em conta suas vertentes internas, assim falo do socialismo. Quer dizer, a filosofia política que também gerou diversas teorias e correntes próprias para buscar soluções para as relações sociais.

Tudo isso significa que as bases do pensamento socialista são tranquilamente compartilhadas por liberais, uma vez que foram os movimentos iluministas quem as forneceram. Como e por qual fim utilizar tais ferramentas é o que também distingue estas filosofias políticas. Podemos ver isso na interpretação que cada filosofia (e suas correntes internas) dá às ideias de liberdade, igualdade ou justiça, por exemplo. Do mesmo modo que individualismo necessariamente não significa “supressão do indivíduo para com outro indivíduo”, assim também é em relação ao coletivismo com a ideia da “supressão do coletivo sobre o indivíduo”. Nem todo socialista é coletivista, como nem todo coletivista é anti-indivíduo. É muito importante mencionar tais fatores porque isso faz cair por terra a errônea crença popular de que “direita é pró-indivíduo e esquerda pró-coletivo”.

Bom, é sabido que liberais e socialistas são os descendentes dos iluministas e comungam da perspectiva otimista de interpretar o mundo enquanto entidade social. Então que movimento defendia a perspectiva pessimista e quem são seus descendentes hoje?

Quando analisamos o período histórico do nascimento das teorias políticas modernas entre o final da Idade Média e início da Idade Moderna, não podemos nos esquecer do não menos importante movimento político chamado Contra-revolução. Movimento este presente em vários países europeus, porém de atuação mais expressiva na França. As ideias desse movimento faziam parte do corpo teórico defendido pelo absolutistas monárquicos, dos quais são os antepassados diretos dos conservadores modernos.

Por terem um ceticismo perante as reivindicações “idealistas” defendidas pelos primeiros liberais e socialistas, os absolutistas eram “impedidos” pelo pessimismo característico de vislumbrar qualquer tipo de reforma ou inovação estrutural na sociedade que não estivesse realmente se firmado numa continuidade. Tanto a democracia liberal, quanto o socialismo de estado ou o anarquismo eram concepções vistas por muitos como uma forma artificial, pois contava com construções teóricas que exigiam um certo grau de confiança abstrata referente ao funcionamento da sociedade e/ ou da própria natureza humana. Por exemplo, para alguns absolutistas a simples ideia da não existência de um governo regido pela hereditariedade soava como “anti-natural”.

Vale comentar que, por diversas particularidades, a Inglaterra não teve um movimento tão expressivo em favor do absolutismo como foi em outras partes da Europa. A ideia de um estado absoluto não era muito bem vista até por aqueles que compartilhavam da perspectiva pessimista. Esse grupo de pessimistas influenciou enormemente o pensamento conservador atual, sobretudo o de origem anglo-saxônica, pois diferencia consideravelmente na forma de se fazer política (mas não as bases filosóficas) dos conservadores mais apegados às lições pelos antigos apoiadores do absolutismo. Da mesma forma que os iluministas tiveram suas diferenças, os contra-revolucionários também tiveram.

Hoje os tempos são outros. Não existe mais grupos defendendo um retorno ao regime absolutista. Os conservadores, que carregam o pessimismo dos contra-revolucionários, já aceitaram a democracia liberal como um sistema de governo estável. Estando o norte conservador na preservação de princípios civilizacionais e das instituições políticas, os meios de como eles serão alcançados pouco importa no âmbito filosófico, seja através de uma forte intromissão governamental ou pela defesa da autonomia e da liberdade das comunidades. Mudança moderada ou radical nunca foi empecilho para o conservador firmar o tradicionalismo, dado que a natureza de sua mudança visada é de caráter mantenedora e não inovadora. Então podemos ver que o conservadorismo pode tanto tender para o autoritarismo, típico dos absolutistas, quanto a uma versão mais tolerante, presente nas ideias dos whigs moderados da Inglaterra. Nível de presença do governo na sociedade não é fator determinante para o espectro político. Nunca foi.

Como as ideias liberais, de uma forma geral, prevaleceram no mundo, é natural que hoje os conservadores defendam muitas delas, dando a impressão de que, a partir de agora, eles “se tornaram liberais”. Não se tornaram. O DNA pessimista ainda é o fator que guia a defesa das estruturas sociais consolidadas e tradicionais do pensamento conservador e não o gene otimista. Ou por acaso social-democratas modernos se tornaram liberais só porque largaram de vez a ideia do estado proletariado para abraçar a democracia liberal? Indo direto ao ponto, um conservador “é tão liberal” quanto um social-democrata, embora este último esteja muito mais próximo da filosofia liberal do que o primeiro por assuntos já comentados anteriormente.

Um adendo

Querer resumir os movimentos iluministas como se fossem apenas “movimentos políticos” é uma interpretação que não se sustenta. Estes movimentos foram muito mais do que expressão política propriamente dita, foram a expressão viva do ser humano em todas as suas relações. Os iluministas influenciaram as ciências naturais, as artes, a educação e forma de passar conhecimento e muitas outras coisas. Ajudaram a florescer verdadeiros debates religiosos, literários e ajudou na ideia da disseminação do conhecimento, seja através do livro ou da imprensa. Suas ideias desafiantes mexiam com a opinião pública, esclareciam conceitos baseados apenas em meras tradições ao ponto de chocar e escandalizar a sociedade com suas opiniões diferenciadas.

Estes senhores (e senhoras também) mudaram o mundo de tal maneira que, em poucos séculos, toda a sociedade deu saltos gigantescos na civilização para melhor. O que não quer dizer que tudo ocorreu como planejado, mas ainda assim vivemos bem melhor do que qualquer época já registrada. Diferente de hoje, em que podemos ver o mundo de nossos avós bem diferente, em séculos passados o que prevalecia era a mesmice. Essa é a perspectiva atuante que gira o mundo. O mundo não é feito por covardes, mas por gente que se arrisca, que questiona ou que sonha. Esse é o grande legado deixado pelos iluministas.

Conclusão

O liberalismo, enquanto filosofia, ainda é uma ideia radical, visionária, inovadora e, em certas vertentes internas, revolucionária. Desde o seu surgimento ele vem propondo ideias e alternativas que colocam em xeque o modo de ver a sociedade baseada na continuidade tradicional. A alegação da ideia do indivíduo como senhor de si é ainda revolucionária mesmo hoje. Estes ensinamentos iluministas também se mantém bem presentes nas vertentes libertárias do socialismo (anarquismo).

Um problema que eu vejo hoje está em enxergar as teorias e tendências políticas de origem direta no marxismo ou não (socialismo fabiano) da era pós-comunismo, quase que de forma exclusiva como “a esquerda”. Não tenho nenhum problema em classificar esta ou aquela prática, vertente ou proposta política como “de esquerda ou de direita” para dar a noção de algo moderado ou radical, de pouco ou mais inovador ou coisa do tipo dentro da realpolitik.

O problema é quando esses conceitos superficiais se transformam em um tipo de regra que envolve as filosofias políticas em si, pois tendem a ficar deturpadas e viciadas. Dado que isso tende a renegar aspectos teóricos e históricos, um estudante com uma maior bagagem cultural sobre filosofia política poderá se atrapalhar e não entender pontos muito mais importantes. A divisão entre “proletariado x burguês” do pré-comunismo e o “capitalismo x socialismo” da Guerra Fria é tão somente um fator histórico que não deve ser levado tanto em conta para os estudos das filosofias políticas. A ciência política pode lidar com isso de uma forma mais elegante.

Se os liberais franceses, antes da ascensão dos partidos de raiz socialista, eram vistos como os progressistas, esquerdistas no século dezenove e hoje são visto como direitistas, muito se deve a ideias particulares deste ou daquele autor, como também das próprias formas como as propostas políticas foram empregadas. Independente ser de cunho liberal ou não. O fato dos liberais terem se aproximado dos conservadores no século vinte para a contenção do marxismo é tão somente um fator circunstancial.

Será mesmo que os liberais não se manteriam próximos dos socialistas caso as vertentes libertárias deste último tivessem se sobressaído como influência maior no mundo, empurrando o socialismo estatista de Marx para os becos da intelectualidade? Bem, a história mostra que liberais e socialistas ficaram juntos na França quando os dois ainda mantinham propostas parecidas. Dado que parte da tradição socialista se radicalizou em prol da liberdade no século dezenove e o liberalismo no século vinte, soa até previsível que estas duas linhagens mantenham novamente laços próximos no século vinte um.

Liberalismo e socialismo, enquanto filosofia, possuem um ancestral comum e a tendência que eu acredito hoje está neles se reatarem como em séculos atrás, visto que as ideologias fortemente estatistas e/ ou autoritárias tão presentes no século vinte tem estado perdendo força nas últimas décadas. Sim, os dois pensamentos surgiram em épocas próximas, embora o liberalismo tenha vindo antes. É por isso que o liberalismo foi a primeira esquerda.

Agradecimentos especiais pelas contribuições feitas por Adriel Santana.

Fonte: Mercado Popular, 02/06/2014, Liberalismo, a primeira esquerda

Publicado originalmente em 17/06/2014

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