terça-feira, 5 de novembro de 2013

Um social-democrata e um liberal concordam sobre a degeneração democrática provocada pela violência nas manifestações de rua

Black bostas em ação!
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (social-democrata) e o filósofo Denis Lerrer Rosenfield (liberal) escreveram, respectivamente nos dias 3 e 4 deste mês que se inicia, sobre o papel degenerador da ação dos black blocs e congêneres sobre a democracia brasileira. FHC aborda também a conjuntura latino-americana tão adversa, no momento, às práticas democráticas, com as ações autoritárias tomadas pelos governos Kirchner (Argentina) e Venezuela (Maduro) contra a liberdade de imprensa e a oposição de seus países. 

Sobre a situação brasileira, no tangente à questão da violência presente nas manifestações, ambos seguem na mesma direção. Diz FHC:    
No Brasil também há sinais preocupantes. Às manifestações espontâneas de junho se têm seguido demonstrações de violência, desconectadas dos anseios populares, que paralisam a vida de milhões de pessoas nas grandes cidades. A essas se somam às vezes atos violentos da própria polícia. Com isso se deixa de ressaltar que nem toda ação coercitiva da polícia ultrapassa as regras da democracia. Ao contrário, se nas democracias não houver autoridade legítima que coíba os abusos, estes minam a crença do povo na eficácia do regime e preparam o terreno para aventuras demagógicas de tipo autoritário. 
Temos assistido ao encolhimento do Estado diante da fúria de vândalos, aos quais aderem agora facções do crime organizado. Por isso é de lamentar que o secretário-geral da Presidência se lamurie pedindo mais "diálogo" com os black blocs, como se eles ecoassem as reivindicações populares. Não: eles expressam explosões de violência anárquica desconectada de valores democráticos, uma espécie de magma de direita, ao estilo dos movimentos que existiram no passado no Japão e na Alemanha pós-nazista. 
Analisa Rosenfield:
Advogar um diálogo com eles, como se fossem a expressão de um descontentamento "social", significa tirar a questão de seu ponto central. A violência é avessa a qualquer diálogo, quanto mais empreendido por grupos que, se chegam a declarar alguma proposta, é com o intuito de que ela seja inexequível - por exemplo, a extinção do "lucro", da sociedade de "mercado", e assim por diante.  (... ) 
Logo, o efeito objetivo dos agentes da violência, os black blocs ou outros nomes que se lhes queira dar, foi o esvaziamento das manifestações autônomas e, mais do que isso, de suas bandeiras. Expulsaram da rua as bandeiras contra a corrupção, por um melhor serviço público e menos impostos. Eis a verdadeira consequência de suas ações. Ou melhor, eis o seu verdadeiro objetivo. A quem interessa isso? 
Curiosamente, os que se dizem "anarquistas", em tese os defensores da autonomia e da liberdade, são os que buscam diretamente tornar inviável toda manifestação livre e autônoma. Nada têm eles de anarquistas no sentido estrito da palavra, são meros representantes de uma esquerda que usa irrestritamente a violência segundo suas conveniências políticas.
Segue a íntegra dos dois textos com os quais concordo inteiramente. Faz tempo que escrevo sobre a necessidade de cercear as ações deletérias desses black bostas e congêneres. De anarquistas realmente, eles não têm nada. Como também já disse, assemelham-se mais aos camisas negras do fascismo do que com qualquer outra coisa. Deixo também  links para as postagens já publicadas sobre este tema neste blog ao fim dos artigos citados.

Sem Complacência

Fernando Henrique Cardoso*
As notícias da semana que terminou não foram auspiciosas, nem no plano internacional nem no local. Uma decisão da Corte Suprema da Argentina, sob forte pressão do governo, sancionou uma lei que regula a concessão de meios de comunicação. Em tese, nada de extraordinário haveria em fazê-lo. No caso, entretanto, trata-se de medida tomada especificamente contra o grupo que controla o jornal El Clarín, ferrenho adversário do kirchnerismo. Cerceou um grupo de comunicação opositor ao governo sob pretexto de assegurar pluralidade nas normas de concessão. Há, contudo, tratamento privilegiado para o Estado e para as empresas amigas do governo.

Da Venezuela vem-nos uma patuscada incrível: as cidades do país apareceram cobertas de cartazes contra a "trilogia do mal", ou seja, os principais líderes opositores, aos quais se debitam as falências do governo! Seria por causa deles que há desabastecimento, falta de energia e crise de divisas, além da inflação. Tudo para incitar ódio popular aos adversários políticos do governo, apresentando-os como inimigos do povo.

O lamentável é que os governos democráticos da região assistem a tudo isso como se fosse normal e como se as eleições majoritárias, ainda que com acusações de fraudes, fossem suficientes para dar o passaporte democrático a regimes que são coveiros das liberdades.

No Brasil também há sinais preocupantes. Às manifestações espontâneas de junho se têm seguido demonstrações de violência, desconectadas dos anseios populares, que paralisam a vida de milhões de pessoas nas grandes cidades. A essas se somam às vezes atos violentos da própria polícia. Com isso se deixa de ressaltar que nem toda ação coercitiva da polícia ultrapassa as regras da democracia. Ao contrário, se nas democracias não houver autoridade legítima que coíba os abusos, estes minam a crença do povo na eficácia do regime e preparam o terreno para aventuras demagógicas de tipo autoritário.

Temos assistido ao encolhimento do Estado diante da fúria de vândalos, aos quais aderem agora facções do crime organizado. Por isso é de lamentar que o secretário-geral da Presidência se lamurie pedindo mais "diálogo" com os black blocs, como se eles ecoassem as reivindicações populares. Não: eles expressam explosões de violência anárquica desconectada de valores democráticos, uma espécie de magma de direita, ao estilo dos movimentos que existiram no passado no Japão e na Alemanha pós-nazista.

Esses atos vandálicos dão vazão de modo irracional ao mal-estar que se encontra disseminado, principalmente nas grandes cidades, como produto da insensatez da ocupação do espaço urbano com pouca ou nenhuma infraestrutura e baixa qualidade de vida para uma aglomeração de pessoas em rápido crescimento. O acesso caótico aos transportes, o abastecimento de água deficiente e a rede de serviços (educação, saúde e segurança) insuficiente não atendem às crescentes demandas da população. Sem mencionar que a corrupção escancarada irrita o povo. Não é de estranhar que, conectados aos meios de comunicação, que tudo informam, os cidadãos queiram dispor de serviços de países avançados ou de padrão Fifa, como dizem. Sendo assim, mesmo que a situação de emprego e salário não seja ruim, a qualidade de vida é insatisfatória. Quando, ainda por cima, a propaganda do governo apresenta um mundo de conto da carochinha e o cotidiano é outro, muito mais pesado, explicam-se as manifestações, mas não se justificam os vandalismos.

Menos ainda quando o crime organizado se aproveita desse clima para esparramar terror e coagir as autoridades a não fazer o que deve ser feito. Estas precisam assumir suas responsabilidades e atuar construtivamente. É necessário dialogar com as manifestações espontâneas, conectadas pela internet, e dar respostas às questões de fundo que dão motivos aos protestos. A percepção de onde o calo aperta pode sair do diálogo, mas as soluções dependem da seriedade, da competência técnica, do apoio político e da visão dos agentes públicos.

Os governos petistas puseram em marcha uma estratégia de alto rendimento econômico e político imediato, mas com pernas curtas e efeitos colaterais negativos em prazo mais longo. O futuro chegou, na esteira da falta de investimento em infraestrutura, do estímulo à compra de carros, do incentivo ao consumo de gasolina, em detrimento do etanol, e do gasto das famílias via crédito fácil, empurrado pela Caixa Econômica Federal. Os reflexos aparecem nas grandes cidades pelo País afora: congestionamentos, transporte público deficiente, aumento do nível de poluição atmosférica, etc.

De repente caiu a ficha do governo: tudo pela infraestrutura, na base da improvisação e da irresponsabilidade fiscal. Primeiro o governo federal subtraiu receitas de Estados e municípios para cobrir de incentivos a produção e compra de carros. Depois, em vista do "caos urbano" e da proximidade das eleições, afagou governadores e prefeitos permitindo-lhes a contratação de novos empréstimos, sobretudo para gastos em infraestrutura. A mão que os afaga é a mesma que apedreja a Lei de Responsabilidade Fiscal, ferida gravemente pela destruição de uma de suas cláusulas pétreas: a vedação ao refinanciamento de dívidas dentro do setor público. Mais uma medida, esta especialmente funesta, que alegra o presente e compromete o futuro.

Não haverá solução isolada e pontual para os problemas que o País atravessa e as grandes cidades sentem mais do que quaisquer outras. Os problemas estão interconectados, assim como as manifestações e demandas. Não basta melhorar a infraestrutura, se o crime organizado continua a campear, nem mais hospitais e escolas, se a qualidade da saúde e da educação não melhora. As soluções terão de ser iluminadas por uma visão nova do que queremos para o Brasil. Precisamos propor um futuro não apenas materialmente mais rico, mas mais decente e de melhor qualidade humana. Quem sabe assim possamos devolver aos jovens e a todos nós causas dignas de ser aceitas, que sirvam como antídoto aos impulsos vândalos e à complacência com eles.

Fonte: ESP, 03/11/2013 * SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA


O uso político da violência


Denis Lerrer Rosenfield*

A discussão em torno da ação dos black blocs tem sido frequentemente enviesada, se não deturpada, por não estar focada no uso que tem sido dado à violência desse grupo nas consequências dela derivadas. Não se trata de manifestação "espontânea" nem da ação de bandos desorganizados, mas de um tipo de intervenção que se define por um propósito claramente político.

Pesquisas sobre o que dizem os que assim agem terminam por arranhar superficialmente o problema, porque seus agentes não são meros indivíduos, mas membros de uma organização com método em suas ações. Suas falas, individualmente, nesse sentido, são necessariamente limitadas, se não encobridoras, na medida em que suas ações em muito transcendem manifestações individuais.

Advogar um diálogo com eles, como se fossem a expressão de um descontentamento "social", significa tirar a questão de seu ponto central. A violência é avessa a qualquer diálogo, quanto mais empreendido por grupos que, se chegam a declarar alguma proposta, é com o intuito de que ela seja inexequível - por exemplo, a extinção do "lucro", da sociedade de "mercado", e assim por diante.

Note-se que tais grupos se caracterizam por ações metódicas e organizadas. São como células que respondem a um comando, dotadas de extrema mobilidade e que conseguem muitas vezes distrair a atenção policial. Atrair a atenção sobre um ato determinado de vandalismo e depredação, com o objetivo de empreender outro muito maior em outro local.

Agem quando de manifestações pacíficas, fazendo-as acabar em violência, visualizada com grande estardalhaço pela mídia. A finalidade é ocupar a cena pública. Quanto maior for o impacto televisivo, maior será seu "ganho", pois tais imagens se propagarão com força por todo o País e mesmo para além dele. Para quem não gosta do crescimento e da competitividade internacional do País, o "ganho" terá ainda um "reconhecimento" extra. Fora de nossas fronteiras, tais imagens adquirem o estatuto de manifestação "popular", como se o Brasil estivesse à beira de um problema institucional sério.

As jornadas de junho foram uma impressionante manifestação de cidadania, com mais de 1 milhão de pessoas nas ruas clamando contra a corrupção e a má qualidade dos serviços públicos, com foco, num primeiro momento, na mobilidade urbana. As pessoas, com toda a razão, estão cansadas de pagar altos impostos, tendo como "retribuição" andar de pé, apertadas, nos ônibus em péssimas condições. O transporte torna-se um calvário. Filas em postos de saúde e hospitais, com atendimento sofrível, mais o baixo nível da educação pública configuram um quadro lamentável: a feia pintura de nosso país.

O exercício da autonomia expresso em tais manifestações, não obedecendo a nenhuma orientação partidária, mostrou um outro País possível, alerta para os desmandos vigentes, não aceitando nenhum tipo de instrumentalização. Naquele momento era como se o País, surpreso, estivesse vendo desfilar uma banda da liberdade e da indignação. Contudo essa irrupção do novo assustou.

Assustou os que até então dominavam as ruas ou delas procuravam ter o monopólio, como os diferentes partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais organizados, que tiveram, então, a intenção de se apropriar desse sopro de autonomia. A heteronomia entrou na pauta. O resultado foram "greves" e "manifestações" que terminaram em completo fiasco, expondo a dissociação entre a tentativa de manipulação e a legítima indignação das ruas.

Nesse contexto, a ação dos ditos "vândalos" passou a ter maior protagonismo, atuando em qualquer tipo de manifestação, relegando os demais a posição secundária. Na verdade, houve um processo de estranhamento: os manifestantes autônomos e indignados não mais se reconheceram naqueles mascarados. A violência exposta não era um espelho seu.

O resultado foi imediato: o refluxo das manifestações autônomas e legítimas. A expectativa nascida quando das jornadas de junho foi progressivamente minguando. Por enquanto, pode-se dizer que desapareceu, embora possa ressurgir em outro contexto. A violência enxotou os indignados da rua.

Logo, o efeito objetivo dos agentes da violência, os black blocs ou outros nomes que se lhes queira dar, foi o esvaziamento das manifestações autônomas e, mais do que isso, de suas bandeiras. Expulsaram da rua as bandeiras contra a corrupção, por um melhor serviço público e menos impostos. Eis a verdadeira consequência de suas ações. Ou melhor, eis o seu verdadeiro objetivo. A quem interessa isso?

Curiosamente, os que se dizem "anarquistas", em tese os defensores da autonomia e da liberdade, são os que buscam diretamente tornar inviável toda manifestação livre e autônoma. Nada têm eles de anarquistas no sentido estrito da palavra, são meros representantes de uma esquerda que usa irrestritamente a violência segundo suas conveniências políticas.

Observe-se que muitas agremiações que participaram das jornadas de junho, como o Movimento Passe Livre, e outras posteriores, de certos sindicatos de professores, nutrem simpatia por esses "vândalos", como se sua causa fosse a mesma, apesar de seus meios divergirem. Comportam-se como "companheiros". Companheiros de quê, precisamente? Da desmobilização popular? Do abandono das bandeiras contra a corrupção, o desvio de recursos do erário e a péssima qualidade dos serviços públicos? Da desresponsabilização de seus responsáveis?

Expressão disso é o fato, politicamente inquietante, de que bradam contra a "criminalização dos movimentos sociais". Traduzindo: a violência deveria ser permitida e defendida, pois seus agentes sustentam uma "causa social". Seu objetivo consiste em deixar a impunidade reinar e as instituições democráticas se enfraquecerem.

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