quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A tragédia das ONG: de fonte de inovação a instrumentos de corrupção

É com tristeza e desalento que observo, de forma cada vez mais constante, o envolvimento das chamadas organizações não-governamentais em escândalos de corrupção. Cooptadas e aparelhadas pelos governos lulopetistas, seus satélites e base aliada, as ONG tiveram seu sentido e objetivos pervertidos por bandidos travestidos de autoridades. Em vez de prestar serviços às comunidades alvo de seus trabalhos, muitas se tornaram via de lavagem de dinheiro e/ou correia de transmissão das ideias e projetos de poder e enriquecimento de partidos. Nada mais avesso à sua natureza primordial.

Um Pouco de História
O chamado Terceiro Setor, composto por organizações da sociedade civil, surgiu como mobilização espontânea de pessoas em prol de objetivos de suas comunidades, desde a melhoria das condições de seus bairros até a conquista de direitos específicos, passando por inúmeras outras metas entre ambos esses polos. Em seu nascedouro, em nosso país, por volta da década de setenta e oitenta,  os grupos, que vieram a conformar o que se chama hoje de Terceiro Setor, surgiram inclusive como alternativa à política partidária, considerada viciada desde aquela época.

Na esteira das mudanças promovidas pela contracultura dos anos sessenta, esses grupos reivindicavam o fim do monopólio dos partidos políticos sobre “o fazer político” e a reinvenção da própria noção de política que então se expandiu inclusive para as relações interpessoais. Entre as muitas frases expostas em grafites e cartazes espalhados por Paris, em maio de 1968, uma se destaca como mote dessa mudança na maneira de pensar a política: “Aquele que fala de revolução sem mudar a vida cotidiana tem na boca um cadáver.” Tudo passa a ser político, e cada indivíduo, agente da política.

No Brasil, na década de noventa em particular, esses grupos acabaram constituindo as organizações não-governamentais, já de forma mais estruturada, buscando emprestar da gestão empresarial formas de otimizar seus resultados. Um obstáculo de porte, porém, sempre dificultou suas ações em nosso país: a baixa consciência política da população e sua consequente falta de mobilização social, fora a politicagem eterna.

Seguramente, esse obstáculo é também um dos grandes responsáveis pela dependência das ONG de verbas governamentais, gerando uma situação bem contraditória. Ao contrário do que ocorre nos EUA, por exemplo, onde a sociedade civil sempre foi organizada (os americanos são incentivados a fazer trabalho voluntário desde jovens), aqui a população foi condicionada a esperar tudo do Estado, a não se ver como agente político, a não se mobilizar para conquistar as coisas sozinha. A maioria sequer sabe que tem esse direito e até dever. Consequentemente, as pessoas mais conscientes que buscam atuar como cidadãs acabam sobrecarregadas pelo esforço de manter suas entidades funcionando, sem apoio financeiro ou voluntário efetivos provenientes da própria comunidade a que servem. Quanto mais marginalizada a população com a qual a organização trabalha mais difícil obter a reciprocidade necessária para manter a organização efetivamente não-governamental.

A partir dos governos de FHC, o Estado brasileiro passou a apoiar financeiramente um grande contingente de ortganizações não-governamentais, embora nunca tenha havido o processo de cooptação e aparelhamento que viria a ocorrer com o lulopetismo. A princípio, os projetos das organizações eram analisados inclusive por um comitê técnico externo ao governo, com vistas a uma análise mais imparcial e meritória, e o financiamento visava ajudar as organizações no seu trabalho junto às populações com que trabalhavam. Os opositores do tucano até mesmo acusavam-no de estar jogando nas costas da sociedade o trabalho que deveria ser do Estado, pelo visto porque a separação entre o público e o privado nunca lhes agradou, e eles confundem alianças com subserviência.

Durante o período do governo FHC, deu-se também um aumento expressivo do número de militantes petistas e congêneres dentro dos movimentos sociais, com o tipo de política que hoje é de todos pública e notória. Quando Lula chegou ao poder em 2003, foi fácil então iniciar o processo de transformar os movimentos sociais em filiais do petismo e de seus aliados bem como de tornar as ONG instrumentos de arrecadação ilícita de dinheiro público para os militantes partidários e suas agremiações. A cooptação e aparelhamento foi de tal ordem que hoje podemos dizer que são poucas as ONG que não perderam o rumo. Mas cumpre enfatizar que elas existem ainda.

A decadência das ONG é fruto da corrupção generalizada
Então, a triste situação atual em que vemos as outrora bem avaliadas organizações não-governamentais tem múltiplas origens que precisam ser analisadas historica e objetivamente para que não se cometam injustiças. Por exemplo, existem organizações que nunca dependeram de dinheiro governamental, vivendo de contribuições de seus associados, venda de produtos e doações. Muitas dessas organizações fazem um trabalho social importante, agora ameaçado pela deterioração da imagem do Terceiro Setor junto à opinião pública. Entretanto, é importante salientar que mesmo essas organizações podem apresentar irregularidades em prestações de contas dada à complexidade da burrocracia brasileira. Atender a todas as picuinhas solicitadas por essa burrocracia não é fácil, levando a erros, o que não quer dizer que essas organizações sejam corruptas. Seria o mesmo que considerar como ladra uma pessoa que, por um descuido na administração financeira pessoal, teve um cheque devolvido e o nome inscrito no SERASA.

Trabalhei no Terceiro Setor por muitos anos, em grupos informais e depois em ONG, com financiamento público inclusive, por isso falo com conhecimento de causa sobre o assunto. Somente os corruptos conseguem enriquecer no setor, mesmo havendo verbas governamentais envolvidas. A remuneração é baixa, o trabalho, muito (continua-se, em paralelo, fazendo muita coisa voluntariamente) e a burrocracia funcionária pública também considerável. Por outro lado, a reciprocidade da população é mínima, a maioria na base apenas do “venha a mim o vosso reino”. Como se não bastasse, com a divulgação de escândalos de corrupção envolvendo as ONG, nos últimos anos, passaram a rolar igualmente olhares desconfiados e atravessados na direção até de insuspeitos integrantes de organizações não-governamentais. Brinco que atualmente se obtém mais respeito, em certos círculos da população, dizendo que se ganha a vida virando a bolsa na esquina do que trabalhando em uma ONG.

Finalizando, fiz esse pequeno resgate histórico para esclarecer que o problema de corrupção que afeta as ONG hoje não é intrínseco a elas e sim fruto do contexto social onde estão inseridas. Trata-se de uma obviedade que, no entanto, pelo que se ouve de gente indignada por aí com essas entidades, é necessário ressaltar. Se temos até agentes da lei, como policiais e – pior – juízes envolvidos em esquemas de corrupção, como imaginar que as ONG escapariam dessa lama?

O problema das ONG é a corrupção que grassa em todos os setores da sociedade brasileira, encabeçada por nossos políticos. Então, para resolvermos essa situação lastimável, primeiro precisamos mudar nossa condescendência com a corrupção em qualquer lugar. Depois, no caso específico das ONG, precisamos despartidarizá-las, devolvê-las à sua verdadeira natureza de alternativa à organização partidária, à sua verdadeira natureza de organização autônoma da sociedade civil. Para tal, a população precisa também se engajar nos processos políticos em vez de delegar tudo aos partidos, governos e ao Estado. Se nossa população se mobilizasse mais politicamente, ela mesma sustentaria as ONG e sobre elas teria todo o controle.

Ainda, dada à situação de deterioração atual, cabe pleitear uma devassa nas ONG existentes e, mesmo que por algum tempo, enquanto não se separa o joio do trigo, reivindicar a diminuição ou mesmo interrupção de subsídios governamentais a essas instituições (sobretudo para tirar muitas das garras do PT). Digo por algum tempo porque existem, em vários países, parcerias público-privadas, para projetos específicos, campanhas principalmente, que nada têm de escusas. Enquanto isso, antes de julgar qualquer ONG, por prudência e senso de justiça, melhor olhar o histórico de cada uma, quem a financia, quem a compõe e com quem ela se relaciona. À noite, como se sabe, todos os gatos são pardos, mas, de dia, percebe-se que são de distintas cores e comportamentos. Com verdadeiro empenho, em médio prazo, assim como podemos pelo menos diminuir o grau de corrupção vigente, podemos mudar essa tragédia das ONG aparelhadas de hoje pelo final feliz da recuperação de sua autonomia e dignidade perdidas.

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